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domingo, 2 de outubro de 2011

Espaço do Docente - Roberto Paulino

Sobre o abandono no usucapião familiar


Professor Roberto Paulino é Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife, Professor Assistente do Curso de Direito da UNICAP, Doutor em Direito - UFPE. Advogado.

A Lei 12.424 de 2011, que trata do programa de habitação popular Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal, foi também responsável pela inclusão no sistema jurídico brasileiro de um novo suporte fático de usucapião. A modalidade, que se pode chamar de usucapião familiar, foi regulada da seguinte forma:

“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Os requisitos para a aquisição da propriedade são, portanto, os seguintes: (a) exercício sobre o imóvel de posse própria, contínua e ininterrupta, por dois anos; (b) extensão do imóvel não superior a 250m2; (c) que o imóvel estivesse, antes da aquisição por usucapião, sob a propriedade conjunta do usucapiente e de seu cônjuge ou companheiro, aqui subentendidos os homoafetivos; (d) que não seja o usucapiente proprietário de outro bem imóvel; por fim, (e) que o usucapiente tenha passado a possuir o imóvel comum com exclusividade, nele tendo sua residência, após o abandono do cônjuge ou companheiro.

A regra suscita uma série de dúvidas e está, por certo, destinada a ser polêmica. Sua utilidade e conveniência no plano da política legislativa devem ser examinadas com um grão de sal, dada a exigüidade do prazo e o discutível papel que desempenhará na divisão do patrimônio conjugal após o término da convivência. Este texto, entretanto, não assumirá o dever de analisar todas estas questões, propondo-se apenas a alertar o leitor para uma dificuldade essencial da interpretação do instituto: o sentido e alcance da expressão abandono no suporte fático do art. 1240-A.

Abandono do lar, em direito privado, é expressão que tradicionalmente remete à apuração de culpa na dissolução conjugal. Assim o é porque o abandono, às vistas do direito de família clássico liberal, consiste em violação voluntária do dever de vida em comum no domicílio conjugal – ato jurídico stricto sensu ilícito, portanto. Por tal razão, o Código Civil de 1916 considerava-o como causa suficiente para o desquite (art. 317, IV, frisando o caráter voluntário) e o Código de 2002 manteve a mesma previsão para a separação judicial (art. 1.572 e 1.573, IV).

Há, porém, bastantes motivos para concluir que o art. 1.240-A incida sem reclamar a prova da culpa daquele que se retira do imóvel conjunto no momento da ruptura familiar. xEm que pese o anacronismo do Código Civil de 2002, que continuou a exigir o exame da motivação dos cônjuges para dissolver o casamento, a jurisprudência brasileira havia excluído tal consideração há tempo.

As causas e os prazos para obtenção da separação judicial como requisito preliminar ao divórcio são uma herança do tortuoso processo legislativo que precedeu a Emenda Constitucional nº 9 e a Lei 6.515/77. Diante da disputa entre divorcistas e anti-divorcistas no parlamento, com a vitória dos primeiros a solução foi estabelecer exigências que dificultassem a obtenção do divórcio, entre as quais a alegação e prova da culpa.

A justificativa da paulatina proscrição das causas culposas, que se deu depois de 1988 na prática forense, é conhecida: na concretude dos casos, dificilmente é possível identificar um único culpado pelo fim do casamento. Se o processo se propõe a realizar tal perigosa redução de complexidade, ainda terá de impor ônus que beira a exigência de diabolica probatio. Ademais, como se já não se tivesse inconvenientes em demasia, a privacidade do casal é gravemente invadida pela desnecessária exposição de sua intimidade nos autos.

Por isso, é natural a exclusão jurisprudencial da culpa, que nem mesmo o Código de 2002 conseguiu reverter. Após a Emenda Constitucional nº 66 de 2010, que para a maior parte da doutrina extinguiu a separação judicial, essa exclusão só tende a se consolidar.

Se o direito de família conseguiu evoluir no sentido de objetivar o direito ao divórcio como expressão da legítima autonomia dos cônjuges de não permanecerem casados e não ter de submeter ao Estado as razões pelas quais não desejam fazê-lo, não há como exigir que o art. 1.240-A se lastreie no abandono intencional culposo.

Uma interpretação sistêmica exige, não há dúvida, que o novo usucapião familiar esteja em consonância com a disciplina que o direito de família imprime ao divórcio. Trata-se, afinal, de uma regra acerca do patrimônio comum no momento da dissolução conjugal. Compreender o contrário implica trazer de volta a subjetividade da culpa para o processo de família, além de criar uma distinção de tratamento de difícil solução, já que o suporte fático abrange a união estável e nesta nunca houve tal exame.

Daí a conclusão de que a menção ao abandono deve ser compreendida como indicativa de separação de fato, caracterizando-se a fluência do prazo para o usucapião a partir do momento em que cessam a convivência e a composse.

Nos termos da teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda, trata-se de ato-fato jurídico lícito, abstraindo o suporte fático da intenção e mesmo da ilicitude, uma vez que todo cônjuge ou companheiro que se separa de fato pratica exercício regular de direito. O usucapiente pode, inclusive, ser o culpado pela separação nos termos da teoria clássica do direito de família, e ainda assim o prazo terá início.

A solução proposta, tão polêmica quanto qualquer outra que à questão se empreste, traz em seu conteúdo duas vantagens. A uma, harmoniza o usucapião familiar com o sistema do divórcio, e, a duas, evita que a culpa seja reintroduzida em perigoso movimento que pode comprometer a atual liberdade de dissolução das entidades familiares sem intervenção estatal. Parece melhor que assim seja, dado que aos juízes, como um dia já se disse dos cavaleiros andantes, “no les toca ni atañe averiguar si los afligidos, encadenados y opresos que encuentran por los caminos van de aquella manera por sus culpas o por sus gracias (...)”. (Cervantes, Don Quijote de la Mancha, primera parte, capítulo XXX)

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