Receptação (Art. 180, Código Penal)
O crime de receptação encontra-se disciplinado no Título II, Dos Crimes contra o Patrimônio, Capítulo VII, artigo 180, do Código Penal Brasileiro. Sendo este um fato punível, é interessante a priori ser ressaltada a sua existência no Direito Romano como um auxílio pós-delito, ou seja, a conivência com o crime praticado anteriormente. O receptador era equiparado àquele que furtou para fins de execução de pena. Somente na Idade Média essa isonomia sofreu uma ruptura, passando o receptador a ter qualidade divergente da do autor do furto.
Feita essa breve introdução, no direito pátrio a receptação dividiu-se em dois crimes díspares: a “receptação” do presente estudo, e o “favorecimento real”, constante no artigo 349, cuja diferença reside no fato deste estar presente no Título XI, Dos Crimes contra a Administração da Justiça.
Trazendo a letra da lei, o crime de receptação consiste em: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influi para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. É interessante fazer a ressalva de que mesmo estando inserido nos crimes contra o patrimônio, não é condição imperiosa que o crime antecessor tenha razão patrimonial, haja vista a possibilidade de haver receptação quando o agente adquire o objeto por meio de peculato e corrupção passiva, por exemplo, que são crimes contra a administração pública.
O delito de receptação é subsidiário de outro crime anterior, faz com que se perpetue uma situação irregular. Nesse sentido, profere Nelson Hungria: "crime que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuidade de uma situação anormal, decorrente de um crime anterior praticado por outrem. É um crime parasitário de outro crime”.
Passando para o estudo do que consiste a receptação, como transcrito acima, o legislador no caput do artigo 180 deliberou sobre “coisa” no sentido lato, sendo assim, por inferência entendemos que a “coisa” pode ser bem móvel ou imóvel, não estando restrita a “coisa móvel” como vemos no furto e no roubo. No entanto, um ramo da doutrina se posiciona de maneira contrária à possibilidade do bem imóvel ser objeto do delito, haja vista que este permanecerá no local onde se encontra e a transferência será, tão somente, da sua posse ou comando.
Analisando a definição do sentido de receptação, vemos que consiste em dar abrigo, receber, dar guarida, isto é, pela própria etimologia da palavra, não há sentido em receber algo que não pode ser objeto de transferência física. Para corroborar esse entendimento, por orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, temos: “em face da legislação penal brasileira, só as coisas móveis ou mobilizadas podem ser objeto de receptação. Interpretação do artigo 180 do Código Penal. Assim, não é crime, no direito pátrio, o adquirir imóvel que esteja registrado em nome de terceiro, que não o verdadeiro proprietário, em virtude de falsificação de procuração” (RHC 57710, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Segunda Turma, julgado em 26/02/1980).
Para que a receptação seja caracterizada, é pressuposto a existência de um crime anterior, contudo, não é forçosa a apuração da autoria deste, como disposto no §4º, do art. 180. Nem mesmo há a necessidade de se haver ocorrido a sentença penal condenatória do autor do crime precedente. Apenas a prova material atestando a origem criminosa do objeto é satisfatória para a apuração do delito.
Com relação às condutas típicas, temos:
a) Adquirir: tornar-se proprietário do bem de modo oneroso, como a compra, ou gratuito, por meio da doação. Por meio da aquisição, o crime passa a ser instantâneo.
b) Receber: ter a posse do objeto, sem se torná-lo proprietário, podendo usufruir, guardar, penhorar. Nessa modalidade, também é tido como crime instantâneo.
c) Transportar: levar bens de grande quantidade de um local para outro. Tem caráter permanente, a sua consumação procrastina com o tempo, assim como a modalidade de conduzir e ocultar.
d) Conduzir: levar bens de pequena quantidade de um local para outro.
e) Ocultar: esconder para não ser encontrado por terceiros.
O Código Penal Brasileiro também traz no §1º, do artigo 180, a forma qualificada da receptação, aumentando a gama de condutas típicas que podem ser realizadas pelo agente do delito. Nesse sentido, dispõe: “Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime.”
Na forma qualificada, o crime é próprio, uma vez que o agente a cometê-lo deve estar “no exercício de atividade comercial ou industrial”, diferentemente da receptação constante no caput do art. 180, caracterizado como crime comum. Não esquecer, no entanto, de que o autor da receptação não deve ter ligação com a consumação do crime anterior. É importante lembrar que a atividade comercial não precisa necessariamente estar em consonância com a lei vigente, conforme previsto no § 2º: “Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência.”
A razão da qualificadora reside no fato de que é mais fácil para o comerciante repassar um objeto adquirido por vias ilícitas, ludibriando o terceiro que age de boa fé, muitas vezes sem o conhecimento apurado para detectar a irregularidade do bem. Para acobertar o terceiro de boa fé, o legislador penalista foi cauteloso na redação do §3º, do art. 180: “Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso. Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa, ou ambas as penas”. Sendo assim, mesmo não possuindo noção a respeito do objeto, a disparidade do preço e da condição serve de alerta para que não seja contraído o bem.
Por fim, tratando do elemento subjetivo, observamos dois pontos na conduta do agente. Em se tratando da receptação simples, o legislador versa: coisa que sabe ser produto de crime. Diversamente do previsto na receptação qualificada: coisa que deve saber ser produto de crime. Sobre essa disparidade, os doutrinadores afirmam a possibilidade de um erro técnico, já que o elemento subjetivo tratado na expressão “deve saber”, se interpretado restritivamente, trata do dolo eventual, isto é, aquele em que o autor aceitou o risco de causar o resultado.
Todavia, como tratar do comerciante que agiu com dolo direto, sabendo plenamente da origem do objeto ilícito? Para isso, há uma bifurcação no entendimento doutrinário. Há quem afirme que se deve interpretar a lei do modo como se apresenta, e nesse caso o consumidor responde não pela forma qualificadora, mas sim pela receptação simples. Aqui verifico um benefício para o agente, como uma maneira de se isentar da sua responsabilidade penal em face da letra da lei. Creio que deve ser aplicado o entendimento do outro ramo da doutrina, que afirmam que a intenção do legislador foi abarcar não só o dolo direto, como também o dolo eventual, realizando assim, uma interpretação extensiva da letra da lei.
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