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domingo, 12 de novembro de 2017

Espaço do acadêmico - André Lucas de Santana Moura


A questão do Estupro, uma análise sobre um dos mais complexos e polêmicos tipos penais




O Título VI do Código Penal, com a nova redação dada pela lei número 12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a prever os chamados Crimes contra a dignidade sexual, modificando, a antiga redação constante do referido Título, que previa os Crimes contra os costumes. A atual redação foca na proteção da dignidade sexual, que é um uma das espécies do gênero dignidade da pessoa humana.

A propósito, o jurista e magistrado brasileiro Ingo Wolfgang Scarlet, comentando sobre o tema esclarece:

“A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”
(Scarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais – 2012 -, p.60)

Esclarecido o Título VI do CP, compreendemos que todos seus capítulos tratam de temas interligados com a proteção a essa “qualidade intrínseca e distintiva” que garante um status ao ser humano, porém, restringindo-se ao meio sexual. 

A modalidade penalmente tipificada no art. 213 do código penal brasileiro expõe o delito de Estupro e a sua relevância é tal que o legislador inseriu como o primeiro artigo do Capítulo I: Dos crimes contra a liberdade sexual; do Título VI: Dos crimes contra a dignidade sexual do Código penal nacional em vigor.

Questões sexuais são sempre motivos de debates e símbolos maiores da individualidade do ser humano. Da mesma forma que a honra, a sexualidade remete algo subjetivo ligado ao psicológico, o termo sexual remete a pertencente ao sexo, em outras palavras a toda estrutura anatômica, fisiológicas e mentais que vem a compor o ser, remetendo a seu pertencimento, ou seja, crença subjetiva numa origem comum que une distintos indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como membros de uma coletividade na qual símbolos expressam valores, medos e aspirações. Esse sentimento pode fazer destacar características culturais e raciais. Isto numa leitura estritamente científica e psicológica do termo.

Não existe uma unanimidade sobre esse conceito, mas é inegável sua extrema importância temática para sociedade, ao ponto em que os legisladores nacionais dedicaram um Título do atual ordenamento criminal vigente no país (2017), privilegiando e dando ênfase a tais formas penais, o legislador buscou, de forma bastante sucinta e bem completa comparada com outras legislações, transparecer a proteção a essa questão.

O ato delituoso que caracteriza o estupro, geralmente é a conjunção carnal forçada, no entanto também enquadra o ato possibilitador do libidinoso quando é praticado sem autorização de outrem, mediante o uso de força ou por meio de constrangimento.

O ilícito é previsto de dessemelhantes formas em praticamente todos os ordenamentos jurídicos dos povos civilizados da atualidade, cada um abordando de diferentes aspectos e abrangência deste que é um dos mais curiosos, debatidos e socialmente reprováveis crimes de possíveis prática, de um ponto de vista global.

A abrangência e os limites do crime de estupro são motivos de intensos e calorosos debates no meio doutrinário (e consequentemente acadêmico) e morais na sociedade no mundo, mostrando uma certa dificuldade tanto social como acadêmico de chegar a um consenso sobre “o que seria um estupro e quais seus desdobramentos?”, dificuldades estas que tenho o interesse e pretendo destrinchar e explicar neste pequeno trabalho acadêmico.
Busco e tenho como grande objetivo demonstrar um pouco da história do delito de estupro durante os últimos séculos, fazendo uma leitura fatos passados e ao mesmo tempo; expor a evolução histórica do dispositivo que trata do estupro e sua “íntima” relação com Atentado violento ao pudor (artigo 214); e destrinchar o dispositivo penal do art. 213 segundo entendimentos jurisprudênciais, minha opinião e as novas modalidades possíveis.

Além disso destaco nesta oportunidade as novas modalidades surgidas no dispositivo de estupro expressas na primeira sentença nacional do chamado: Estupro Virtual, sentença esta que causou um alvoroço no mundo jurídico nacional e foi pouco explorado no espaço universitário.

História

Numa análise puramente históricas, ataques sexuais são bem comuns. Desde os primórdios, acredita-se, que o homem busca saciar seus instintos mais íntimos; Não existem registros da pré-história humana sobre o assunto, no entanto no Antigo Oriente Próximo (Área que contempla o Oriente Médio, Ásia central e vai até a parte nordeste da África) começa a ser visível um entendimento claro e delimitado do que seria um estupro, nesta região, no período dos patriarcas bíblicos, existia um ideal de mulher como objeto, como pode ser visto no texto bíblico em Êxodos 20:17: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”.

Na Babilónia, um dos pontos de destaque do código de Hamurabi é a morte do estuprador de “mulher virgem e/ou casada”, pena semelhante ao que os judeus praticavam contra os estupradores; os assírios, por outro lado, consideravam a possibilidade de morte ou até estupro de familiares do estuprador (os detalhes não são tão claros, devido a falta de documentação deste povo, o qual não tinha escrita).

A Grécia antiga não mudou muito a dinâmica e o entendimento do crime de estupro em relação ao entendimento do antigo Oriente próximo.

Por outro lado em Roma, no discurso jurídico e moral latino, stuprum é a relação sexual ilícita, traduzível como "libertinagem criminal" ou "crime sexual". Stuprum engloba diversos crimes sexuais, incluindo incesto, estupro ("relações sexuais ilegais pela força") e adultério. Era tido, o stuprum, como um ato vergonhoso em geral, ou qualquer desgraça pública, incluindo mas não limitado a sexo ilícito. A proteção contra a má conduta sexual estava entre os direitos legais que distinguiam o cidadão do não-cidadão. Raptus é palavra latina que originou o termo português Rapto, em certos registros, é utilizado como sinônimo de Estupro como para sequestro, no entanto tais termos não se confundem, por ter a finalidade, do Raptus, ser geralmente sexual, ocorria uma certa confusão com os termos. 

É perceptível uma redução ainda maior do terno de estupro, a segurança penal para o estupro e demais crimes se aplicava somente aos detentores da cidadania romana, escravos e outros povos sob o domínio de Roma não tinham proteção penal se o crime fosse praticado por um romano. Além disso os entendimentos do antigo oriente e da Grécia antiga são mantidos (inexistência do estupro dentro do casamento e aceitação do estupro de guerras).

Durante a Idade média na Europa central houve uma fortificação da força da igreja e um enfraquecimento substancial do estado na Europa central e ocidental (Que não estavam sob o domínio dos árabes), a qual condenou tais atos libidinosos e separou estupro, que continuou associado com a prática de ato libidinoso forçado e não propriamente a conjunção carnal forçada, da questão do adultério, a pena por ambos os crimes eram bastante pesadas.

Porém o estupro sofreu um certo afrouxamento, ocorria uma proteção da figura masculina em detrimento da feminina, existia um maior constrangimento da vítima, situação registrada e documentada desde dos primórdios da humanidade o que o transformou aos poucos em um crime “figurativo” e de aplicações bem restritas.

Vale destacar que a disposição em classes sociais, nobreza, clero e camponeses; propiciaram maior impunidade nos crimes praticados pelas duas classes superiores contra a inferior, implicando todos os crimes. O crime de estupro em pessoas do sexo masculino, que já não era bem considerado no idade clássica, desapareceu praticamente por completo, sofrendo represália não pelo ato do sexo ou ato libidinoso forçado, mas pela questão do homossexualismo. 

O afrouxamento, a proteção e o constrangimento da vítima perdurou durante parte da idade moderna, a exemplo da França do Antigo Regime (século XVI ao século XIX), verifica-se inúmeros exemplos do estupro, paralelo a raridade dos processos e julgamentos públicos, justificados pelo silêncio que se impõe sobre a vítima, além de alguns atos de exceção descritos como horrores pela justiça, pelos relatórios ou pelos jornais. Sobre o assunto elucida Vigarello:

“Uma visão por muito tempo moralizada do crime, sob o Antigo Regime, reforça esse silêncio, envolvendo a vítima na indignidade do ato, transformando em infâmia o simples fato de ter vivido, pelos sentidos e pelos gestos, a transgressão condenada.”

O século XIX, conhecido como “Século da Ciência” trouxe uma nova visão para como o crime em si. Através de justificações biológicas e posteriormente sociológicas, advindas do cientificismo, traziam o conceito de criminoso nato, assim como criava uma figura para o estuprador como uma pessoa vagabunda, errante e proveniente das periferias das cidades. O estuprador passou a ser visto então como a degeneração de uma parte social ainda não contemplada pela Ciência e pelo Progresso, e seu tratamento penal começou a tornasse mais rígido em alguns países onde são adotados internação forçada com tratamentos peculiares e de eficácia discutível.

Enquanto isso as vítimas ainda eram subjugadas pela sociedade, esquecidas e muitas vezes humilhadas, assim, mesmo com o endurecimento e o novo entendimento da posição do estuprador, boa parte dos casos caia no esquecimento ou eram ignorados pela autoridade, com o falho argumento que a vítima pediu por aquilo.

Uma observação importante é a questão do estupro dentro do casamento, como já foi dito, tal modalidade era aceita durante a antiguidade e só veio a ser questionada no meio social no final do século XX, enquanto o estupro de guerra é um pouco mais obscuro, no início do século XX já é possível ver uma certa reprovação dessa modalidade, no entanto determinar um início é muito incerto.

O século XX constrói figuras novas para o estuprador visto anteriormente como degenerado, agora o estuprador é também o pai, o padre, o professor... Os distúrbios atingem todos, sem remediar classes ou posições. Nesse século as vítimas são vistas de forma destacada na sociedade e o pós-estupro é mais estudado, das mais diversas formas possíveis, no entanto ainda existe uma intimidação social da vítima. A psicologia vem enumerando os efeitos devastadores desse crime. E ainda alguns Códigos Penais se renovam, desassociando o assédio do atentado ao pudor e do estupro, tripartição adotada por vários códigos mundo a fora.

O tipo penal do delito de estupro sofreu diversas mudanças nos últimos anos de país para país ampliando ou restringindo sua aplicação e delimitando o espaço de ocorrência.  Por exemplo em alguns países era um crime praticado exclusivamente em vítimas do sexo feminino, o estupro em homem não exista penalmente.

Outro ponto de extrema importância é que em todas as épocas, esse delito foi visto como um crime com alto grau de reprovação social e duramente reprimido, entretanto não se tinha uma ampla abrangência, não se compreendia a relação sexual não sendo consensual como estupro dentro do casamento, está era vista como uma obrigação da mulher em relação ao cônjuge e a família; No entanto foi um crime que durante parte da sua história, sofreu diversa amenizações, teve sua aplicação bastante restrita e, por questões sociais, gerou muita impunidade.

Brasil – Código Penal

O primeiro foi o Código Penal do Império de 1830, que veio substituir as ordenações Filipinas que regeram o país durante a união ibérica até o período pré-independência.

Na nossa antiga legislação penal, a violência sexual era prevista no Livro V, Título XVIII. Para aquele que cometesse tal crime com qualquer mulher, seja ela honesta ou não, prostituta ou escrava, seria punido com pena de morte, em outras palavras a abrangência do delito é bastante ampla, mesmo ainda não sendo admitido a possibilidade de estupro de pessoa do sexo masculino. Mesma pena seria aplicada para o partícipe que tivesse dado ajuda, favor ou conselho. Nem mesmo o perdão posterior da vítima ou o casamento afastava a aplicação da pena de morte. Já a punição para a sodomia (coito anal) consiste na morte pelo fogo. Nessa época quem conhecesse algum sodomita era obrigado a denunciá-lo, sob pena de perda dos bens acrescido de banimento. Posteriormente as penas para o estupro foram alteradas para trabalhos forçados.

A expressão estupro só foi utilizada no Código de 1890 que abrangia a relação sexual cominada mediante violência. Se a mulher fosse Pública ou Prostituta a pena era diminuída. O art. 268 do mesmo código tratou de tipificar o crime de estupro, in verbis, como:
Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não, mas honesta. Pena – se a estuprada for mulher honesta, virgem ou não, um a seis anos de prisão celular. Se for mulher pública ou prostituta a pena é de seis meses a dois anos de prisão.
No Código Penal de 1940 o estupro somente poderia ser praticado pelos homens e apenas as mulheres poderiam ser sujeito passivo. A pena aplicada para o homem que praticasse tal crime seria pena de reclusão de 6 a 10 anos. Contudo, procedia mediante ação penal pública condicionada a representação, artigo 225, caput, do Código Penal. E seria pública incondicionada quando o crime fosse praticado mediante violência real (Súmula 608 do STF) e quando a vítima fosse menor de 18 anos de idade. (Parágrafo único do artigo 225.)

A doutrina que predominante nessa época pressupõe obrigatoriedade da recusa total da vítima, além de outros absurdos como a inexistência de estupro dentro do casamento e a possibilidade de perdão pelo casamento. Outra parte da doutrina só considera estupro se houver ejaculação interna.

Outra observação importante é consignado no art. 214 que tipifica o antigo crime de Atentado Violento ao Pudor.  Tal artigo tinha função “complementar” ao crime de estupro, situação semelhante ao que ocorre em países Europeus como, por exemplo na França. O Art. 214 diz, in verbis,
Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90 (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
O crime contido no art. 214 tinha maior abrangência que o art. 213 e menores limitações jurisprudênciais. Não tinha necessidade de total resistência e podia ser cometido dentro do casamento, apesar que na prática isso era uma ilusão. Como já citado sua essência era puramente complementar e de certa forma grotesca, por agrupar em si diversas modalidades possíveis sem expressamente dizê-las.

Na Europa, o delito estupro é visto como uma modalidade pouco abrangente dentro de diversas formas penais ligadas aos crimes contra sexualidade.

No recente código penal francês (Code Pénal), por exemplo, o crime de estupro é tipificado no article 222-23:
  Article 222-23
Tout acte de pénétration sexuelle, de quelque nature qu'il soit, commis sur la personne d'autrui par violence, contrainte, menace ou surprise est un viol. Le viol est puni de quinze ans de réclusion criminelle.
A legislação penal francesa define como estupro "qualquer ato de penetração sexual, qualquer que seja a sua natureza, cometido contra outra pessoa pela violência, coação, ameaça ou surpresa". A pena de prisão prevista é de 15 anos, mas pode chegar a 20 se houver agravantes, ou a 30 se a vítima vier a morrer em decorrência do ato. O estupro é punido com prisão perpétua se o ato "for acompanhado ou seguido de tortura ou atos de barbárie", conforme determina o Code Pénal da França em seu art. 222-24. Os crimes de agressão sexual (Art. 222-27 e 222-28, além de sua definição ser dada pelos art. 222-22, 222-22-1 e 222-22-2) exibição sexuais em locais públicos (art. 222-32) e Perseguição sexual (art. 222-33), que exerceriam a função, por equiparação, do atentado violento ao pudor a nossa legislação.

A Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009 unificou o estupro e o atentado violento ao pudor no art. 213 do Código Penal, de modo a evitar inúmeras confusões em relação ao tipo penal.

Análise do atual tipo

Inicialmente a doutrina observa duas situações importantes no crime de estupro, a necessidade de um agir finalisticamente para o ato e a existência de duas situações diferentes dentro do delito.

O agir finalisticamente pressupõe que o agente pratica o ato com total vontade e pleno controle da sua atividade psíquica e física, sempre considerando a existência de culpa ou não do agente.

Se o agente agir da forma referenciada acima  para a conjunção carnal com a vítima, o delito se consumirá com a efetiva penetração do pênis do homem na mulher, não importando se a penetração for total ou parcial, muito menos se houve ejaculação. Ainda existe embate se a conjunção carnal iria se estender para a relação com pessoas do mesmo sexo, tal embate é pouco útil para vida prática, pois a suposta hipótese cairia na prática do ato libidinoso, o que evita a impunidade. 

Já na segunda parte do artigo 213, o delito se consome quando o agente obriga a vítima praticar com ele ato libidinoso diverso da conjunção carnal, depois do constrangimento através de violência ou grave ameaça. 

A tentativa é admissível em nosso ordenamento, pois o agente pode iniciar a execução e vê-la frustrada por motivo alheio a sua vontade. Dessa forma, só será possível a tentativa antes de iniciado o ato libidinoso ou a conjunção carnal.

O crime deve ser praticado Mediante Violência ou Grave ameaça, com isso o tipo impõe que a violência ou a grave ameaça venham a ser meios para a prática do ato e nunca podem ser resultados ou objetivos finalísticos. O meio violento ou a grave ameaça devem gerar medo real e perigo real a vítima, o que acaba colocando o crime em uma situação subjetiva e sujeita a várias interpretações. 

O exame de corpo de delito na vítima é tido como obrigatório para provas, quando é possível ser feito.

Em relação ao local de consumação, segundo a doutrina majoritária, é onde é praticado o delito criminoso ou praticado a tentativa. No entanto surgiram novos embates dentro da doutrina, mediante a possibilidade de vítima e infrator estarem em lugares diversos e as novas possibilidades que surgiram para esse tipo penal seguindo os avanços tecnológicos e comunicativos.


Com isso destaco a primeira sentença de um estupro consumado a distância mediante o uso de meios comunicativos e aparelhos eletrônicos, essa situação adversa foi chamada popularmente de “Estupro Virtual”. Essa nova forma mostrou uma adaptação do crime as novas tecnologias, algo considerado inviável segundo a doutrina predominante no território nacional, e reiterou a possibilidade do crime ser praticado a distância. 

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