Dupla
percepção: não delinquente e delinquente
Existe
uma questão real com a qual grande parte dos que lidam com o Direito Penal se
defrontam na prática. A quase totalidade das pessoas apontadas como autores de
um crime simplesmente negam haver praticado o mesmo ou apresentam tal
justificativa para o cometimento dos seus atos que a maioria das pessoas adere
às razões que motivaram e justificam o ato ou então acreditam que a investigação foi mal conduzida, apontando para um inocente. Essa simpatia se faz presente de forma mais
acentuada entre os estudantes, vez que é normal à crença na existência de um
erro na investigação e decisão final.
Claro
que casos como o dos “irmãos Naves” lamentavelmente existem. É comum a
descoberta, anos depois das decisões judiciais, de falhas que culminaram com
prisões cujas consequências perniciosas jamais serão devidamente quantificadas,
nem permitem a retomada de uma situação de equilíbrio psíquico para o acusado e
as pessoas que efetivamente são próximas ao mesmo. A compensação oferecida,
geralmente uma indenização pecuniária, não possui o condão de tornar magicamente
inexistente a dor sofrida.
Chama
especial atenção a percepção que o agente tem de si mesmo quanto a sua
responsabilidade que lhe cabe na prática do crime. Vale lembrar delitos
recentes como o assassinato de Elisa Samúdio. Na hipótese o acusado negou com
tal tranquilidade sua participação no desaparecimento e morte da mãe de seu
filho, implorando publicamente que ela voltasse para mostrar que estava viva,
que muitos chegaram a ver nele um caso claro de personalidade psicótica.
No
caso da morte de João Hélio no Rio de Janeiro, uma criança com sete anos que
foi arrastada até a morte por muitos quarteirões, presa que estava pelo cinto
de segurança, os assaltantes que roubaram o carro disseram em tom de zombaria
que o menor “era como um boneco de Judas”.
Os
transtornados assassinos, movidos pela loucura da paixão, normalmente afirmam
que “foram obrigados, em razão do comportamento da mulher” a matá-las em nome
do enxovalhamento de sua honra e da posição constrangedora em que foram
colocados pela traição da mulher.
Essa dupla percepção não é nova. A própria sociedade, curiosamente, não só a aceita como chega ao nível de estímulo ao tornar simpáticos e admiráveis personagens como Dom Juan, Robim Hood, Lampião e tantos outros. O primeiro, o invejado conquistador cuja lista de amantes teria atingido a mil e três só na Espanha, conforme as acuradas anotações de seu servo Leporello, era na verdade violador da honra feminina que não hesitava em matar os pais das até então donzelas para chegar ao fim de suas conquistas amorosas. A visão que temos hoje de Dom Juan está presente a perfeição em um ótimo filme intitulado “Dom Juan de Marco”, com os atores Johnny Deep e Marlon Brando.
Robin Hood, bem
considerado, tomou a justiça em suas mãos e a aplicou atendendo apenas a sua
vontade, por mais que consideremos válida a metáfora contida nas suas
aventuras, “tomando dos ricos para
distribuir com os pobres”. Já o nosso Lampião, fruto de injustiças na juventude
foi “jogado” no cangaço. Muito crime praticou no sertão de seu de seu tempo,
porém muitas histórias de valentia e galanteria cercam seu nome. Em uma cidade
do sertão pernambucano existe uma estátua em seu louvor em praça pública, e em
outra os turistas procuram conhecer na antiga “Corte do Sertão” a casa onde o
cangaceiro descansava após suas investidas.
Podemos retornar no tempo até a Grécia antiga, terra dos
filósofos. Homero revela ter
conhecimento dessa dupla percepção da realidade e seguindo o
processo usado pelos gregos àquela época, para o debate das ideias, apresentava
a questão da percepção do procedimento e elaboração de uma justificativa na
mente do homem, com base na narrativa da ação de Agamenon, da qual resultou a
guerra de Tróia.
Foi
responsabilizando os deuses pelos seus atos e declarando que sua mente fora
turvada pela deusa Ate, que explicou e tentou justificar o seu comportamento ao fugir com a mulher de
Aquiles:
“Não mereço censura.
Foi Zeus, meu destino e a Fúria que anda nas trilhas da escuridão que cegaram meu julgamento naquele dia em que tirei a mulher de Aquiles.
O que poderia eu fazer? Nesses momentos há um poder que assume o comando: Ate, a filha mais velha de Zeus, que nos cega, espírito maldito, adejando pelas cabeças dos homens, corrompendo-os, abatendo ora este ora aquele. Inclusive Zeus certa vez foi cegado por ela, e sabe-se que Zeus está acima de todos os homens e deuses.”
(Ilíada, XIX - 87/100)
João Franco
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