Um pouco da história do infanticídio
Trecho de um trabalho publicado por João Franco
Na
relação entre a mãe e o seu filho a eliminação deste por aquela, após o
nascimento, foi mais frequente do que se gostaria de lembrar. O procedimento de recusa ou o reconhecimento
da impossibilidade - quer real ou imaginária - de assumir as responsabilidades
da maternidade conduziram mães a duas
opções: a primeira consistia no
abandono do filho por doação ou simples depósito ao relento, numa
expectativa de ser acolhido por uma pessoa caridosa e a segunda conduzia ao
simples e puro homicídio.
O
Corão, disciplinando a vida de milhares de seres humanos submetidos as suas
normas, já estabelecia como regra o respeito à vida. Condenava o homicídio,
ainda que se tratasse de pena; o suicídio era repudiado (“não deveis destruir a
vós mesmos”), e o infanticídio constituía-se em crime contra o ser humano e
ofensa a Deus, por duvidar de sua providência: “Não mateis vossos filhos por
temor a indigência. Nós os proveremos, e a vós. Matá-los é um grande pecado.”
Relatado em toda a antiguidade o infanticídio foi melhor
registrado no desenrolar do Séc. XIV, permitindo que se examine o
comportamento feminino voltado a
desembaraçar a mãe dos filhos
indesejados, quer pela morte
ou por intermédio do abandono dos
recém-nascidos. É nessa época tornada
clara a dificuldade enfrentada pela autoridade, quer civil ou religiosa, para
regulamentar e punir o comportamento homicida.
Se a legislação então vigente sobre o infanticídio se revelava
severa, por outro lado tornava-se quase impossível exercer qualquer controle no
domínio da vida privada no interior dos campos e lares. “Existem informações de que aproximadamente
30% das crianças abaixo dos quatro anos perdiam a vida vítimas de acidentes
mortais.[1] Este fato
levou aos clérigos
e os que exerciam o poder civil a advertirem severamente os
responsáveis pelos recém nascidos, lembrando
que cada infante
morto pesava na consciência das
mães e das amas. Já no Séc. XV o
aprimoramento da legislação tornou possível um aumento de acusações desse
delito e julgamento de mulheres infanticidas.
A legislação sobre a morte de crianças recém nascidas chegou a exigir
que uma mãe solteira declarasse a sua gravidez, sob pena de, na falta desse, ato
ser automaticamente acusada de assassínio se a criança nascesse morta, cabendo
o ônus da prova de inocência à mãe.” (Georges Duby e Michelle
Perrot, História das Mulheres, Vol III pág. 111 Ed. Afrontamento-Porto.)
[...]
Conforme Jean
Delumeau em “O pecado e o medo” (Vol. 1, Pág 530. Ed.Edusc São Paulo 2003)
a Igreja Católica propagou o medo da morte sem batismo. Essa é a razão
principal do Édito de Henrique II em 1556 ordenando às moças grávidas que
declarassem seu estado, e depois do parto, às autoridades, agindo então o rei
num contexto de cristandade como responsável pela vida, mais ainda pela
salvação espiritual de seus súditos. O texto do edito prova o grande temor do
soberano e de seus conselheiros era que as moças seduzidas, fazendo desaparecer
os filhos ilegítimos, os privassem do batismo. O infanticídio era grave,
sobretudo porque excluía a sua vítima do paraíso. Tendo a criança “sido privada
do batismo e da sepultura pública e habitual”, declara o edito que a mãe seja
“tida como assassina de seu filho”. E “como reparação punida de morte e
derradeiro suplício, e com o rigor que a qualidade do caso merecer”.
[...]
Existia
uma verdadeira angústia na época medieval no tocante a certeza quanto à
legitimidade da filiação. Nas reuniões sociais ou nos lares os contos eram um
entretenimento comum e as narrativas veladamente ameaçavam as esposas dos
nobres de trazerem à luz monstros disformes em caso de adultério através de
trágicas histórias. Nas classes menos
abastadas tudo conduzia a facilitar uma gestação não desejada, a partir do
insuficiente espaço nas casas onde um só quarto abrigava todos os seus
habitantes; do ambiente rústico onde se desenrolava a vida; dos débeis laços de autoridade
urdidos entre aqueles que estavam primordialmente preocupados em obter o mínimo
de alimento para assegurar a sobrevivência;
do fato - hoje esquecido - de que a expectativa de vida raramente atingia quatro décadas; do total desconhecimento de métodos
anticoncepcionais dando margem à
proliferação de poções e tinturas tão
inúteis a esse fim como o uso de
amuletos. A isso se unia a severa
noção do pecado da concupiscência e
a consequente repulsa
a indisfarçável culpada. A mãe não casada tornava-se um fardo
social e motivo de vergonha para sua
própria família, obrigada a coabitar com uma pecadora que gerava filhos
“bastardos”.
Ocorria
na época uma particular situação: até os chamados filhos bastardos, ou seja, os
gerados fora do casamento por linha paterna podiam contribuir para a riqueza de
uma linhagem, inclusive na nobreza, sendo, contudo, - salvo por doação direta -
difícil a eles participar dos bens paternos por ocasião da distribuição dos
quinhões hereditários. E nesses momentos
era uma presença, no mínimo, incômoda.
Este
tipo de fecundidade fora do casamento era interdito na linha feminina, podendo
levar à morte da acusada. Deve-se
admitir que fosse difícil apresentar provas de adultério feminino quando os
filhos nasciam no quadro do casamento. As raras acusações sobre relações
adulterinas registradas em nível de nobreza, como as apontadas à Rainha
Guinevere, esposa do Rei Arthur, geralmente terminavam em
uma ordália, enquanto
a “leitura das
ricordanzi burguesas é encontrar um
bando de bastardos domésticos.
Margherita Datini queixa-se de
suas empregadinhas (1390), e o cambista Lippo del Sega festeja
seus setenta anos violando sua criada (Florença,
1363). Em casa a presença de primas e sobrinhas pode ser perturbadora, sobretudo quando
se partilha o
mesmo quarto. Processos por incesto
são por vezes julgados perante os
tribunais (Uma prima, uma sobrinha, Condado de Pisa, 1413)” (Philippe
Ariés e Georges Duby, História da Vida Privada, Vol II, pág. 296 Companhia das Letras)
HISTÓRICO
O
Direito Romano considerava a morte do filho como consequência de ação do pai um
não crime, um direito do mesmo, já que ele dispunha do jus vitea et nescis. A mesma ação praticada pela mãe era
considerada como parricídio.
As
crianças nascidas com deformidade ou aspecto monstruoso poderiam ser mortas de
conformidade com a Lei das XII Tábuas (Século V a.C.) Só com o Código
Justiniano, que sofreu pesada influencia do cristianismo é que houve alteração
em tal aceitação, com a cominação de severas penas em caso de morte das
crianças recém nascidas.
O
Direito Canônico considerou o dever de proteção e cuidado por parte dos pais, a
debilidade da vítima e a premeditação na prática de tal morte, punindo com
rigor a morte do filho pelos pais, considerando a ação como homicídio.
Com
o Iluminismo, sob a aparência de benignidade e compreensão sobre os dramas
pessoais por parte de algumas mães foi proposto um tratamento mais tolerante.
Em Beccaria (Dos delitos e das penas. §
36) se vê a justificativa do tratamento benevolente:
“[...] o
infanticídio é o efeito quase inevitável alternativa em que se vê uma
desgraçada, que apenas cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu aos esforços da
violência. Por uma parte a infâmia, da outra a morte de um ente incapaz de
avaliar a perda da existência: como não preferiria essa última alternativa que
a subtrai à vergonha, à miséria, juntamente com o infeliz filhinho?”
A
partir de 1800 o infanticídio passou a ser visto como um homicídio
privilegiado, devendo ser verificado as condições físicas e psíquicas da mulher
durante o parto, buscando o equilíbrio entre o conflito envolvendo a lei, a
prevalência da honra e o instinto maternal.
No
Brasil Império (1830) estava prevista uma pena reduzida à mãe que matasse o
filho para ocultar desonra própria. Um terceiro envolvido na morte da criança
ao nascer seria igualmente beneficiado com essa pena reduzida se o fizesse na
primeira semana de vida.
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