A lei na antiguidade
Na formação da lei na Antiguidade a sua ligação para com a
religião é muito clara. De conformidade com Fustel de Coulanges
O homem não esteve
estudando a sua consciência dizendo: Isso é justo, aquilo não. Não foi assim
que apareceu o Direito Antigo. Mas o homem acreditava que o lar sagrado, em
virtude da lei religiosa, devia passar de pai para filho: dessa crença resultou
a propriedade hereditária de sua casa.
O homem que havia
sepultado o pai em seu campo julgava que o espírito do morto tomava, para
sempre, posse desse terreno reclamando da posteridade um culto perpétuo: daí
resultou que o campo, domínio do morto e local dos sacrifícios, se tornasse
propriedade inalienável da família. A religião dizia: o filho continua o culto
e não a filha; e a lei repetiu com a religião: o filho herda e a filha não; o
sobrinho por linha masculina herda, mas o sobrinho por linha feminina já não é
mais herdeiro.
A lei surgiu desse
modo, apresentando-se a si própria e sem o homem necessitar ir ao seu encontro.
Brotou como consequência direta e necessária da crença; era a própria religião,
aplicada às relações dos homens entre si[1].
Torna-se evidente que, diversamente de outros povos que centraram a vida
política no homem ou no Estado, no judaísmo acreditava-se que, por ser Deus a
origem da lei e esta sendo a expressão do desenvolvimento do projeto divino, os
homens estavam obrigados a proceder de conformidade com a sua vontade. Não é
possível ao judeu separar o sobrenatural das regras legais de conduta humana,
criando a expectativa de que cada homem deveria considerar cada ato seu como
atendimento e realização do desejo de Javé.
É profundamente esclarecedor de tal visão o livro de Isaac
Bashevis Singer, premio Nobel de Literatura, No tribunal de meu
pai. Ali o autor, filho e neto de judeus hassídicos, relata sua
experiência no tribunal rabínico instalado na sua casa, onde as decisões
obedecem a rígidos preceitos, como explica Samuel Belkin:
As leis relativas ao “crime”, por exemplo, resultam muitas vezes do
conceito religioso de “pecado”, e as leis que governam a vida da comunidade
derivam diretamente do conceito talmúdico relativo ao caráter sagrado da
personalidade individual. As leis dos “tribunais do homem” são vistas como
reflexo das “leis dos Céus” [2].
O mal integrante do comportamento oposto aos desígnios da lei na visão
judaica e cristã significa uma ausência. O “pecado” equivale a não ser, a
deixar de realizar embora possuindo o potencial para ser. O pecado qualifica o
fato de não escutar e não colocar em prática o que é ordenado, pois tal omissão
contraria a vontade expressa pelo Senhor Deus. O pecado consiste em não escutar
a voz que fala através da lei, e ao fazer isso, afasta-se do projeto divino.
O Deuteronômio vai além de ser mais um relato da
história do povo e da lei de Israel, configurando-se como uma proposta com um
projeto definido de uma opção pela vida e liberdade.
É necessário esclarecer que a liberdade oferecida no Deuteronômio não
possui o sentido de autodeterminação, como ausência de limites ou condições.
Também não exprime o sentido atualmente em voga de que “a liberdade é o direito
de fazer tudo que as leis permitem” [3],
que nos foi legado por Montesquieu.
A lei explicitada no Sinai é um roteiro que conduz à efetivação da
Aliança e se traduz na prática de uma liberdade partilhada com o objetivo de
permitir o desenvolvimento da vida. Por isso a afirmativa de que a Lei é uma
instrução, um caminho que conduz à vida e à liberdade:
Eis que hoje ponho
diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a desgraça.
Se obedeceres aos
mandamentos do Senhor teu Deus, que hoje te imponho, amando ao Senhor teu Deus,
seguindo seus caminhos e guardando seus mandamentos, suas leis e seus decretos,
viverás e te multiplicarás e o Senhor teu Deus te abençoará na terra em que
vais entrar para possuí-la (Dt 30,
15-16).
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