Os
efeitos da legalização da maconha para o traficante e seu tipo penal
Falar
de legalização de uma droga, especificamente a maconha, alvo de diversas
discussões na sociedade atual, exige uma vasta análise acerca de diversos
aspectos que giram em torno da questão. Tomar um posicionamento na questão, se
colocando favorável ou não à descriminalização, além de exigir um estudo
bastante aplicado sobre o tema, gira em torno de convicções e demais questões
pessoais.
A
hipótese da legalização traria uma série de modificações em nossa sociedade, e
o debate cabe justamente para discutir e tentar verificar se essas modificações
serão favoráveis ao povo brasileiro, de um modo geral. O senador Cristovam
Buarque, que pretende ser relator de projeto de lei a favor da legalização,
afirmou que ainda pretende sanar algumas dúvidas, que tratam justamente dos
impactos sociais que a aprovação do suposto projeto de lei geraria: “Vou fazer um estudo muito cuidadoso. Vou analisar,
por exemplo, se o uso da maconha é porta de entrada para outras drogas, se a
legalização aumenta o consumo, se realmente existem efeitos medicinais. Quero
ver se a legalização está sintonizada com os costumes brasileiros ou se será um
desrespeito ao que o brasileiro sente. E, fundamental, quero ver se, de fato,
isso reduziria a violência. Vamos analisar tudo isso e, no final, chegaremos a
uma conclusão: se devemos, ou não, legalizar, como fizeram o Uruguai, cidades
norte-americanas e alguns países europeus.”[1]
Mas
este texto busca discutir apenas um dos aspectos que geram todo o debate em
torno da legalização da maconha: as modificações no tipo penal, em específico,
para o traficante de alta periculosidade, aquele que trafica grande quantidade
da droga, envolvendo-se diretamente na sua entrada no país. Ora, se há
modificação no tipo penal, muito provavelmente haverá modificações na pena em
abstrato do traficante.
Na
jurisprudência, usa-se alguns artigos da parte especial do Código Penal para
fundamentar decisões, uma vez que nele não é tipificado o “crime de tráfico de
drogas”, a exemplo dos artigos 334 (contrabando ou descaminho) e 180
(receptação). Todavia, há legislação específica para tratar o tráfico de
drogas: a lei 11.343 de 23 de agosto de 2006.
No
direito brasileiro, a lei especial deve prevalecer sobre a geral. Assim, um réu
condenado por tráfico de drogas deve ter sua pena dosada de acordo com a Lei
11.343/06. A tendência disso é uma pena bem maior para o traficante, que será
acusado, em grande parte dos casos, pelo crime previsto no artigo 33 da Lei do
Tráfico de Drogas, verbis:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar,
produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5
(cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e
quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz,
fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito,
transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou
produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas
que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer
natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância,
ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o
tráfico ilícito de drogas.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao
uso indevido de droga:
Pena - detenção, de 1 (um)
a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.
§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem
objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6
(seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e
quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o
deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada
a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário,
de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização
criminosa.
O
crime de contrabando, disposto no art. 334 do Código Penal, descreve, em sua
tipificação, comportamento que designa o crime de tráfico, assim como exposto
no art. 33 da lei 11.343/06. A diferença é que o crime de contrabando não gira
em torno somente das drogas, mas pode se tratar de qualquer mercadoria ilícita que
entra no país, a exemplo de armas. Da mesma forma, procede-se com o art. 180 do
Código Penal, que em seu tipo qualificado (§ 1°), também caracteriza crime de tráfico.
Além
do mais, por ter o agente cometido um crime equiparado a hediondo, não é comum a
jurisprudência aceitar a substituição da pena privativa de liberdade pela pena
restritiva de direitos, a menos que a pena em concreto seja igual ou inferior a
4 anos [2].
A legalização
da maconha traria algumas modificações na tipificação e na dosimetria da pena.
Tornando lícito o trânsito das drogas, o agente responsável pela sua entrada e
comercialização no país deverá ter autorização do Estado para exercer esta
atividade e, consequentemente, pagar tributos. Se o agente continuar entrando
com a droga no país sem respeitar as imposições estatais, ele continuará
cometendo crime, mas este crime não será o mesmo que quando a droga era ilegal,
uma vez que a ilicitude da mesma não gera o ônus de portar habilitação para
entrar com a substância no país ou comercializá-la, além de pagar impostos ao
Estado.
Nesse
diapasão, estaríamos diante do crime de contrabando, que encontra-se no artigo
334 do Código Penal, cujos tipo e pena são os seguintes:
Contrabando ou descaminho
Art. 334 Importar ou
exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de
direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de
mercadoria:
Pena - reclusão, de um a
quatro anos.
Todavia o
contrabando praticado por um traficante é diferente daquele praticado por um
agente sem autorização expressa. Deve-se observar que na proibição do
contrabando pode ser absoluta ou relativa. No caso de a entrada da substância
ser ilícita, estaríamos diante da proibição absoluta, enquanto que no caso de o
trânsito da mesma ser permitido, porém requerer observação de algumas
imposições, como a já mencionada autorização expressa. Ainda no 334 do CP,
temos o descaminho que se dá mediante importação ou exportação de mercadorias
lícitas sem o devido recolhimento de tributos. Nelson Hungria fez sintetizou
bem a distinção entre contrabando e descaminho:
“Contrabando é a
clandestina importação ou exportação de mercadorias cuja a entrada no país, ou
saída dele, é absoluta ou relativamente proibida; enquanto descaminho é a
fraude tendente a frustrar, total ou parcialmente, o pagamento de direitos de
importação ou exportação ou do imposto de consumo (a ser cobrado na própria
aduana) sobre mercadorias.” [3]
No âmbito da diferenciação entre
contrabando e descaminho, por fim, insta mencionar, também, a lição de
Bittencourt, que inclui a questões sociais no delito de contrabando, restando
ao descaminho tão somente a violação de obrigações tributárias: “o
contrabando atenta, teoricamente, contra a moral, saúde, higiene, segurança
pública; enquanto que o descaminho viola obrigações aduaneiras (tributos
aduaneiros).” [4]
Como
o escopo deste trabalho é a conduta do traficante de alta periculosidade, numa
suposta legalização, podemos afastar a possibilidade de descaminho por dois
motivos. O primeiro é que, como ele não possui autorização para importar ou
exportar a mercadoria em questão, qual seja, a maconha, não haverá obrigação
tributária. O segundo é que na entrada e saída de drogas, de forma clandestina,
pode se verificar ofensa à saúde pública, à moral e à segurança. A jurisprudência
entende desta forma no caso da entrada ilegal de cigarros em nosso território. [5]
Portanto,
condutas semelhantes cometidas antes e após a legalização, apesar de ainda
serem consideradas delituosas, são tipos diferentes. Teríamos a passagem de
contrabando absolutamente proibido para contrabando relativamente proibido, bem
como a desqualificação da conduta perante a lei 11.343/06. Em linhas gerais, um traficante de alta periculosidade, que
teria seu crime dosado entre 5 e 15 anos, conforme lei mais específica, passa a
ter a dosagem entre 1 e 4 anos, de acordo com o Código Penal.
As leis mudam de acordo
com os anseios da sociedade. A partir do momento em que determinada prática ou
costume torna-se obsoleto ou inaplicável à ordem social, ela deve ser
substituída. No Estado Democrático de Direito, isso se dá por meio das leis.
Descriminar o uso e até o comércio de determinada droga que hoje é ilícita
seria um fato inédito na sociedade brasileira. Mas de nada adiantaria fazer
isso se a sociedade como um todo não estivesse culturalmente preparada. Da
mesma forma, não adianta que isso seja feito sem que a sociedade tivesse avançado
e demandasse uma mudança. Logo, vale questionar: a sociedade brasileira está
pronta para a legalização da maconha? Ela está pronta para descriminalizar o
uso, regularizando o seu comércio? E, por fim e não menos importante, como será
a fiscalização e a segurança do país depois de o traficante de alta
periculosidade ter a sanção de seu delito em abstrato sensivelmente reduzida?
Esses
são só alguns aspectos. O debate é muito longo e gira em torno de diversas
outras questões. Contudo, como este trabalho atém-se à questão do crime de
tráfico perante o Código Penal, o enfoque é chamar a atenção para um provável
fracasso na redução da entrada de mercadoria ilícita em nosso país, pelo menos
no que tange à imposição de sanção penal.
[1] Retirado
de: http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2014/02/cristovam-buarque-relatara-projeto-que-legaliza-plantio-domestico-de
. Acesso em 19/03/2014.
[2] HABEAS CORPUS.
TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. CONDENAÇÃO CONFIRMADA EM SEDE DE APELAÇÃO. TRÂNSITO
EM JULGADO. OCORRÊNCIA. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA
DE REVISÃO CRIMINAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. CAUSA ESPECIAL DE
DIMINUIÇÃO DE PENA. NÃO INCIDÊNCIA. QUANTIDADE, DIVERSIDADE E
NATUREZA DAS DROGAS
A DENOTAR DEDICAÇÃO ÀS ATIVIDADES CRIMINOSAS. REVOLVIMENTO
FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE.
SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA
DELIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. PENA SUPERIOR A 4 ANOS.
IMPOSSIBILIDADE. REGIME FECHADO FIXADO COM BASE NA
HEDIONDEZ E NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL OCORRÊNCIA. REGIME DIVERSO DO FECHADO. POSSIBILIDADE EM TESE. AFERIÇÃO IN CONCRETO DEVE
SER REALIZADA PELO JUÍZO DAS EXECUÇÕES. WRIT NÃO
CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO. [...]
3.
Esta Corte, na esteira do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, entende
ser possível nas condenações por tráfico de drogas, em tese, a fixação
de regime menos gravoso, bem como a substituição da pena privativa
de liberdade por restritiva de direitos, sempre tendo em conta as particularidades
do caso concreto.
STJ - HABEAS CORPUS Nº 276.047 - SP (2013⁄0282627-6) . Relatora: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. DJe: 25/09/2013
[3] HUNGRIA, N. Comentários
ao Código Penal: parte
especial. v. 9. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1959. p.432
[4] BITENCOURT, C. R. Tratado
de Direito Penal: parte
especial 5. São Paulo: Saraiva, 2007. p.227
[5] AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
CONTRABANDO DE CIGARROS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO
APLICAÇÃO. CRIME QUE OFENDE A SAÚDE PÚBLICA. PRECEDENTES DO STJ. INOVAÇÃO
PROCESSUAL. INVIABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. O entendimento cristalizado pela Terceira Seção do
STJ, em relação ao princípio da insignificância, aplica-se apenas ao delito de
descaminho, que corresponde à entrada ou à saída de produtos permitidos,
elidindo, tão somente, o pagamento do imposto.
2. No crime de contrabando, além da lesão ao erário
público, há, como elementar do tipo penal, a importação ou exportação de
mercadoria proibida, razão pela qual, não se pode, a priori, aplicar o
princípio da insignificância.
3. Não é possível, em agravo regimental, analisar
questões somente arguidas nas suas razões, por caracterizar inovação de
fundamentos.
4. Agravo regimental não provido.
STJ - AgRg no AREsp 390344 PR 2013/0306522-2.
RELATORA: MIN. MOURA RIBEIRO. DJe: 28/10/2013
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