Coautoria nos crimes de Infanticídio e Aborto
Diariamente,
estudantes de Direito, ao adentrar o universo jurídico, deparam-se com
questionamentos relevantes, fruto da relação, muitas vezes desarmônica, entre a
teoria que fundamenta a jus-ciência a sua aplicação prática na vida social.
Isso ocorre porque a ciência jurídica não é estática, mas está em constante
evolução, o que torna essencial uma postura crítica que demonstre uma posição
ativa do operador do Direito.
O
tema em análise, qual seja, o da possibilidade de coautoria nos crimes de
infanticídio e de aborto, tem, portanto, se mostrado de grande realce por se
encaixar nas questões relativas à aplicabilidade das penas nos crimes contra a
vida do recém-nascido/nascente, questões essas que geram um grande clamor
público bem como uma sede por punições severas. A reprovabilidade do meio
social por esses crimes é tanta, que a própria doutrina passa a adotar
posicionamentos que venham a questionar até mesmo o disposto em nosso código
penal.
Passa-se,
dentro dessa perspectiva, à análise de elucidado tema, tomando como ponto de
partida uma sucinta fundamentação acerca do que vem a ser a coautoria.
Ocorre coautoria quando mais de um agente
pratica o mesmo delito, tendo consciência de sua cooperação na ação comum. Há,
portanto, um liame psicológico entre as ações de cada agente, o que dá um
caráter de crime único. Nesse sentido, é mister destacar as ilustres palavras
de Cezar Roberto Bitencourt, o qual conceitua:
“O decisivo na
coautoria, segundo a visão finalista, é que o domínio do fato pertença aos
vários intervenientes, que, em razão do princípio da divisão de trabalho,
apresentam-se como peça essencial na realização do plano global.”
Diante
do exposto, resta indagar se caberia a elucidada coautoria nos crimes de aborto
e de infanticídio. Visando responder tal celeuma doutrinária, é imprescindível
uma prévia análise acerca dos elementos dos supracitados tipos penais bem como
do disposto em nosso Código Penal Pátrio.
Nesse
diapasão, estabelece o contido no art. 123 do CP:
“Art. 123: Matar, sob a
influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:
Pena – detenção, de 2
(dois) a 6 (seis) anos.”
Como
se percebe, o crime de infanticídio possui uma pena mais benévola do que o
crime de homicídio, previsto no art. 121, cuja pena é de reclusão de 6 a 20
anos. Isso ocorre porque o Código Penal destacou o critério fisiopsíquico, qual
seja, o estado puerperal, que influencia a prática delituosa.
Assim,
notando que o referido estado puerperal se apresenta como um privilégio que
atenua a culpabilidade, parte minoritária da doutrina considera inadmissível o
concurso de pessoas, firmando-se contrária à comunicabilidade de tal privilégio.
“O estado puerperal é
circunstância pessoal, insuscetível de extensão aos coautores ou partícipes. O
terceiro que realiza atos de execução ou auxilia, induz ou instiga a mãe a
perpetrá-los responderia pelo delito de homicídio.” COSTA E SILVA, A.J.
Não obstante o exposto ao norte, o pensamento
majoritário afirma que é admissível coautoria no crime de infanticídio. Para
entendermos tal afirmativa, é importante estabelecer a diferença entre os
crimes de mão própria e os crimes próprios. Os primeiros só podem ser
praticados diretamente por determinada pessoa, ou seja, diretamente pelo
sujeito ativo. Não admitindo, portanto, coautoria nem autoria mediata. O
segundo, por sua vez, exige tão somente uma qualidade ou condição pessoal do
sujeito ativo, o que não impede a possibilidade de coautoria.
Nas
palavras de Damásio de Jesus, a diferença está no fato de que “nos crimes
próprios, o sujeito ativo pode determinar a outrem a sua execução (autor),
embora possam ser cometidos apenas por um número limitado de pessoas; nos
crimes de mão própria, embora possam ser praticados por qualquer pessoa,
ninguém os comete por intermédio de outrem.”
Percebe-se,
portanto, que a exigibilidade de qualidade especial do agente não impossibilita
o concurso de pessoas na prática do delito. Tal classificação em crime próprio
não deve ser confundida com o crime de mão própria, daí a importância da
supracitada distinção, uma vez que neste último é imprescindível que o agente
pratique diretamente o verbo do tipo, não admitindo ação conjunta no mesmo
delito.
Dentro
dessa conjuntura, sendo o infanticídio classificado como crime próprio,
perfeitamente plausível se tem a possibilidade de concurso de pessoas, e assim,
de coautoria. Basta tão somente que o terceiro, atuando em companhia da
parturiente, não desconheça a influência desta pelo estado puerperal e concorra
para a morte do recém nascido.
Fortificando
tal entendimento majoritário, estabelece o contido no art. 30 do CP:
“Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias
e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.”
O infanticídio é
tipo penal autônomo previsto em nosso ordenamento, não se trata de modalidade
de homicídio privilegiado, mas sim de um tipo penal independente expresso no
Código. O estado puerperal, não obstante seja condição de caráter pessoal -
como bem aponta a Doutrina- é elementar
para a classificação do delito.
Em outras palavras, o estado puerperal é elemento
essencial para a caracterização do tipo penal em enfoque, sem ele,
descaracterizado estaria o crime de infanticídio.
Assim, se o infanticídio fosse previsto como tão somente
um parágrafo do art. 121 do CP, seus dados seriam considerados meras
circunstâncias e, portanto, não se comunicariam aos coautores. Nesse sentido
disciplina o penalista Rogério Greco:
“Não tendo sido essa a opção da lei
penal, todos aqueles que, juntamente com a parturiente, praticarem atos de
execução tendentes a produzir a morte do recém-nascido ou do nascente, se
conhecerem o fato de que aquela atua influenciada pelo estado puerperal,
deverão ser, infelizmente, beneficiados com o reconhecimento do infanticídio.”
Dessa forma, em se tratando de delito autônomo, com
expressa tipificação penal, faz-se necessário o reconhecimento da possibilidade
de coautoria, caso esteja presente o elemento caracterizador da infração. A não
comunicação ao coautor da elementar essencial (estado puerperal) à configuração
do delito seria, na verdade, uma afronta ao disposto no art. 30 do nosso
Diploma Repressivo.
Nesse
diapasão, passaremos agora à análise da possibilidade de coautoria no crime de
aborto, conceituado pelo jurista Luiz Regis Prado da seguinte forma:
“O aborto consiste,
portanto, na morte dada ao nascituro intra
uterum ou pela provocação de sua expulsão.”
Acerca
do delito em questão, tem-se basicamente as penas do art. 124 – aplicada à mãe
em caso de autoaborto-, do art. 125 – para o terceiro que age sem consentimento
da gestante- e a do art. 126. – aplicada para aquele que age com o
consentimento da gestante.-, todas, obviamente, previstas em nosso Código
Penal.
Ao
atribuir cada pena prevista aos respectivos agentes, é necessário ter em mente
o disposto no art. 29, do CP, o qual estabelece:
“Art. 29. Quem, de
qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na
medida de sua culpabilidade.”
Percebe-se,
portanto que o legislador, estabelecendo penas diferentes para a mãe, quando
agente, e para o terceiro que atua no delito, analisou cada atuação e a
respectiva culpabilidade, obedecendo ao disposto no artigo supracitado.
Tal fidelidade ao artigo em questão é o que
justifica a presença de uma pena menos severa para a mãe, uma vez que esta, em
virtude da gravidez e de fatores externos – fatores sociais, por exemplo,
diante de uma gravidez indesejada. -, passa por um choque psicológico, o que
pode dar causa à prática do delito. Por esse motivo, portanto, necessita de uma
menor reprovabilidade por parte do Estado e uma maior proteção no cumprimento
da pena, qual seja de detenção de 1 a 3 anos.
Destarte,
o art. 124, como bem fora mencionado alhures, previu o aborto provocado pela
gestante. Esse é um caso típico de crime de mão própria, ou seja, que exige uma
atuação direta do sujeito ativo (a gestante). Dessa forma, incabível se tem a
possibilidade de coautoria nessa modalidade. Se um terceiro induz, auxilia ou
instiga a própria gestante a realizar o aborto em si mesma ou a consentir que
outrem o faça, responde tão somente como partícipe.
As
demais hipóteses, prevista no Código, dizem respeito a crimes comuns, nos quais
o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, podendo esta atuar, inclusive, em
concurso. Fato este que torna admissível a coautoria. São os casos de aborto
provocado por terceiro, sem consentimento e com consentimento da gestante,
respectivamente os art. 125 e 126 do referido Código Penal.
Diante
do exposto, conclui-se que a análise acerca da possibilidade de coautoria nos
crimes de infanticídio e de aborto é de grande importância para uma correta
aplicação do ordenamento jurídico. Por se tratarem de crimes que violam a vida
do recém-nascido ou nascente, são extremamente reprováveis, sendo, portanto,
natural o clamor social por uma justiça mais severa.
Não
obstante, é mister a presença de segurança jurídica na aplicação da lei,
fazendo-se uso de critérios objetivos para a punição do agente diante da
conduta típica. Afasta-se, dessa forma, a finalidade vingativa da pena e faz-se
sobressair o seu caráter repressivo e punitivo, respeitando os elementos dos
tipos penais bem como a previsão do legislador
.
Nesse
sentido, lembro-me das palavras do escritor italiano Dante Alighieri, que já em
seu século reconhecia a importância do ordenamento jurídico para a pacificação
social: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, se
conservado, conserva a sociedade; se corrompido, corrompe-a.”
Assim,
a aplicação do nosso diploma legal deve estar revestida dos critérios
normativo-objetivos que venham dar ao agente uma punição cabível, dentro de uma
neutralidade de julgamento. Isso evita que as normas penais sejam instrumentos
de vingança e, ainda dá-lhes um caráter crítico-racional – diante dos anseios
sociais por punições draconianas - revestido não só de objetividade como também
de justiça.
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