A
existência humana é pressuposto elementar de todos os demais direitos e
liberdades dispostos na Constituição Federal (MENDES, 2014, p. 255). Assim,
devido a imensurável importância da vida humana, esta se encontra revestida de
proteção constitucional, sendo elencada como direito fundamental (Art.5,
Caput), apresentando-se tanto como uma proteção ao cidadão quanto como um dever
para o Estado de garanti-la.
O
Brasil é marcado pela tradição cristã, sendo a criminalização do aborto
consequência de uma sociedade marcada predominantemente pelos valores cristões
(apesar de não ser exclusiva das sociedades “cristãs” a criminalização do
aborto). A tipificação das condutas, assim como a criação de qualquer outra
norma jurídica, decorre da seleção de determinados valores tidos por relevantes
em uma dada sociedade, que merecem, portanto, proteção jurídica.
A
proteção jurídica constante nos Art. 124 ao Art.126 do Código Penal refere-se a vida humana intra-uterina, de tal forma que é de suma
importância saber o momento em que o fato, aborto, interrupção da gravidez com
a morte do feto, passa pela incidência normativa, ingressando no mundo jurídico
como um tipo penal. Assim, quando se fala em aborto, debate-se sempre o momento
que a vida se inicia, devido à incerteza e a importância do questionamento.
No Direito Civil, para o reconhecimento da personalidade
jurídica, e consequentemente, da capacidade jurídica, existem três correntes
principais sobre o momento de inicio da vida humana: a concepção natalista, que
só concede personalidade ao nascituro com o nascimento com vida, tal corrente é
defendida por Pontes de Miranda (1983, p. 162-163), que argumenta:
No
útero, a criança não é pessoa. Se não nasce viva, nunca adquiriu direitos,
nunca foi sujeito de direitos. Entre a concepção e o nascimento, o ser vivo
pode achar-se em situação tal que se tenha de esperar o nascimento, para se algum
direito, pretensão, ação ou exceção lhe deveria ter tido. A personalidade
começa quando o nascimento se consuma.
Já a corrente concepcionista, em que o nascituro é pessoa
desde a concepção, como defende França (1980, p.143-144)
Filosoficamente o nascituro
é pessoa, porque já traz em si o germe de todas as características do ser
racional. O embrião está para a criança, assim como a criança está para o
adulto. Juridicamente traz à tona o fato de não existir nação onde não se
reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro.
Por fim, tem-se a corrente condicional, afirmando que a
personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, mas os direitos do
nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, portanto, sujeitos à
condição, termo ou encargo. Sobre o tema destaca-se Monteiro (2003,p.64)
Discute-se
se o nascituro é pessoa virtual. Seja qual for a conceituação, há para o feto
uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode
ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos. Mas para que estes
se adquiram, preciso é que ocorra o nascimento com vida. Por assim dizer,
nascituro é pessoa condicional; a aquisição da personalidade acha-se sob a
dependência de condição suspensiva, o nascimento com vida.
O código civil brasileiro, em seu Art.2 declara que “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, o enunciado da lei
demonstra que a vida intra-ulterina possui relevância dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, que é um bem jurídico a ser protegido, a partir disto
entende-se a tipificação de crimes contra o direito a vida do nascituro.
Etimologicamente, no latim, “privação” é ab e “nascimento”,
ortus, e foi dessa composição que surgiu a palavra “aborto”. Para uma
conceituação, Carrara afirma que “o aborto consiste na interrupção
da gravidez com a morte do feto”.
O código penal prevê alguns
tipos de aborto, são eles: o autoaborto (Art. 124), o aborto realizado por
terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (Art. 125 e Art. 126), o
aborto necessário (Art.128, I) e o aborto resultante de estupro (Art.128, II).
Interessante é a classificação feita por Cunha (2015, p.83):
a) natural:
interrupção espontânea da gravidez, normalmente causada por problemas de saúde
da gestante (um indiferente penal); b) acidental: decorrente de quedas,
traumatismos e acidentes em geral (em regra, atí- pico); c) criminoso: previsto
nos arts. 1 24 a 1 27 do CP; d) legal ou permitido: previsto no art. 1 28 do
CP; e) miserável ou econômico-social: praticado por razões de miséria,
incapacidade financeira de sustentar a vida futura (não exime o agente de pena,
de acordo com a legislação pátria); f) eugenésico ou eugênico: praticado em
face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquicas
ou físicas (exculpante não acolhida pela nossa lei). A importância do assunto
recai, em especial, nos casos dos fetos anencefálicos, merecendo tópico
apartado no final do capítulo; g) honoris causa: realizado para interromper
gravidez extramatrimonium (é crime, de acordo com nossa legislação); h) ovular.
praticado até a oitava semana de gestação; i) embrionário: praticado até a
décima quinta semana de gestação; j) fetal: praticado após a décima quinta
semana de gestação;
O código penal brasileiro tipifica, no Art.124, o
aborto da seguinte forma: “Provocar aborto
em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, como anteriormente
explanado, o bem jurídico protegido do tipo é a vida humana, mas como bem
lembra Bittencourt (2009):
O bem jurídico
protegido é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente falando,
não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção — feto ou embrião
— não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do
organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e
recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.
E continua o referido autor:
O Direito Penal
protege a vida humana desde o momento em que o novo ser é gerado. Formado o
ovo, evolui para o embrião e este para o feto, constituindo a primeira fase da
formação da vida. A destruição dessa vida até o início do parto configura o
aborto, que pode ou não ser criminoso. Após iniciado o parto, a supressão da vida
constitui homicídio, salvo se ocorrerem as especiais circunstâncias que
caracterizam o infanticídio, que é uma figura privilegiada do homicídio (art.
123).
Portanto, protege-se um ser vivo que ainda não é
pessoa, pois para tanto, é necessário o nascimento com vida (Art. 2 do Código
civil), o sujeito ativo do crime de aborto pode ser tanto a gestante, no caso
de autoaborto, quanto o terceiro, nos casos dos Art.125 e 126 do código penal,
assim escreve Bittencourt (2009):
Sujeito ativo no
autoaborto e no aborto consentido (art. 124) é a própria mulher gestante.
Somente ela própria pode provocar em si mesma o aborto ou consentir que alguém
lho provoque, tratando-se, portanto, de crime de mão própria. No aborto
provocado por terceiro, com ou sem consentimento da gestante, sujeito ativo
pode ser qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial.
O verbo do Art. 124 do CP, que gera a adequação
típica ao fato, consiste em “provocar aborto”, em outras palavras, consiste em
provocar a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto, ou ainda
consentir para que outro lho provoque, sendo necessário ainda o dolo da conduta
(não se admite a modalidade culposa). Sobre a temática, escreve Cunha (2014,
p.85):
Na primeira conduta
típica, a mulher grávida, por intermédio de meios executivos químicos, físicos
ou mecânicos, provoca (dá causa, promove) nela mesma, mediante ação ou omissão,
a interrupção da gravidez, destruindo a vida endourerina. A segunda conduta
típica é a de consentir a gestante no abortamento, exigindo-se, assim, a figura
do provocador, o qual, como já vimos, responderá pelo crime do art. 1 26.
No caso do Art. 125, “provocar aborto sem o
consentimento da gestante”, o legislador penal não procurou apenas proteger a
vida intrauterina, como a vontade da mãe em ter a criança, por isto, diz-se que
é um aborto sofrido. Por este motivo, o código penal pune com maior rigor o
aborto sem o consentimento da gestante, sobre a matéria Bittencourt(2009)
escreve :
O aborto sem
consentimento da gestante (art. 125) — aborto sofrido — recebe punição mais
grave e pode assumir duas formas: sem consentimento real ou ausência de
consentimento presumido (não maior de 14 anos, alienada ou débil mental). Nessa
modalidade de aborto, a ausência de consentimento constitui elementar negativa
do tipo.
Para que haja a tipificação do aborto, é ainda
relevante lembrar as palavras de Noronha (2007, p.52):
A gravidez há que ser
normal. Difere da extrauterina e da molar. A primeira se dá no ovário, fímbria,
trompas, parede uterina (interstí- cio), tendo como consequência o aborto
tubário, rotura da trompa e litopédio. A segunda consiste em formação
degenerativa do ovo fecundado, sendo sanguínea, carnosa e vesicular. A
interrupção da gravidez extrauterina não é aborto, pois o produto da concepção
não atingirá vida própria; sobrevirão, antes, consequências muito graves,
matando a mulher, ou pondo em sério risco a sua vida. A expulsão da mola também
não é crime, já que não existe aí vida.
Portanto é necessário que o feto tenha expectativa
de vida ao nascer, para que se possa caracterizar o crime de aborto. Nesta
linha é que se entendeu, na ADPF 54, julgada pelo STF, que a interrupção da
gravidez no caso de anencefalia não caracteriza o tipo penal “aborto”.
Referencias
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
de direito penal: parte
especial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v.2.
CARRARA, cit. por Nelson Hungria, op. cit. p. 275-276.CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal - Parte Especial
FRANÇA, Limongi. Manual de Direito Civil. 4a ed. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
JESUS, Damasio E. de Direito penal. V.2: parte especial; Dos crimes ontra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.119.
MAGALHÃES, Noronha, Direito Penal cit., v. 2, p. 52
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocência Mártires. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva. 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário