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domingo, 20 de março de 2016

Espaço do acadêmico - Matheus Ribeiro de Oliveira e Maria Emília Ribeiro


 Considerações gerais sobre o aborto no ordenamento jurídico brasileiro

 

A existência humana é pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades dispostos na Constituição Federal (MENDES, 2014, p. 255). Assim, devido a imensurável importância da vida humana, esta se encontra revestida de proteção constitucional, sendo elencada como direito fundamental (Art.5, Caput), apresentando-se tanto como uma proteção ao cidadão quanto como um dever para o Estado de garanti-la.

O Brasil é marcado pela tradição cristã, sendo a criminalização do aborto consequência de uma sociedade marcada predominantemente pelos valores cristões (apesar de não ser exclusiva das sociedades “cristãs” a criminalização do aborto). A tipificação das condutas, assim como a criação de qualquer outra norma jurídica, decorre da seleção de determinados valores tidos por relevantes em uma dada sociedade, que merecem, portanto, proteção jurídica.

A proteção jurídica constante nos Art. 124 ao Art.126 do Código Penal refere-se a vida humana intra-uterina, de tal forma que é de suma importância saber o momento em que o fato, aborto, interrupção da gravidez com a morte do feto, passa pela incidência normativa, ingressando no mundo jurídico como um tipo penal. Assim, quando se fala em aborto, debate-se sempre o momento que a vida se inicia, devido à incerteza e a importância do questionamento.

No Direito Civil, para o reconhecimento da personalidade jurídica, e consequentemente, da capacidade jurídica, existem três correntes principais sobre o momento de inicio da vida humana: a concepção natalista, que só concede personalidade ao nascituro com o nascimento com vida, tal corrente é defendida por Pontes de Miranda (1983, p. 162-163), que argumenta:

No útero, a criança não é pessoa. Se não nasce viva, nunca adquiriu direitos, nunca foi sujeito de direitos. Entre a concepção e o nascimento, o ser vivo pode achar-se em situação tal que se tenha de esperar o nascimento, para se algum direito, pretensão, ação ou exceção lhe deveria ter tido. A personalidade começa quando o nascimento se consuma.

Já a corrente concepcionista, em que o nascituro é pessoa desde a concepção, como defende França (1980, p.143-144)

Filosoficamente o nascituro é pessoa, porque já traz em si o germe de todas as características do ser racional. O embrião está para a criança, assim como a criança está para o adulto. Juridicamente traz à tona o fato de não existir nação onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro.  

Por fim, tem-se a corrente condicional, afirmando que a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, mas os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, portanto, sujeitos à condição, termo ou encargo. Sobre o tema destaca-se Monteiro (2003,p.64)

Discute-se se o nascituro é pessoa virtual. Seja qual for a conceituação, há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos. Mas para que estes se adquiram, preciso é que ocorra o nascimento com vida. Por assim dizer, nascituro é pessoa condicional; a aquisição da personalidade acha-se sob a dependência de condição suspensiva, o nascimento com vida.

O código civil brasileiro, em seu Art.2 declara que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, o enunciado da lei demonstra que a vida intra-ulterina possui relevância dentro do ordenamento jurídico brasileiro, que é um bem jurídico a ser protegido, a partir disto entende-se a tipificação de crimes contra o direito a vida do nascituro.

Etimologicamente, no latim, “privação” é ab e “nascimento”, ortus, e foi dessa composição que surgiu a palavra “aborto”. Para uma conceituação, Carrara afirma que “o aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do feto”.

O código penal prevê alguns tipos de aborto, são eles: o autoaborto (Art. 124), o aborto realizado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (Art. 125 e Art. 126), o aborto necessário (Art.128, I) e o aborto resultante de estupro (Art.128, II). Interessante é a classificação feita por Cunha (2015, p.83):

a) natural: interrupção espontânea da gravidez, normalmente causada por problemas de saúde da gestante (um indiferente penal); b) acidental: decorrente de quedas, traumatismos e acidentes em geral (em regra, atí- pico); c) criminoso: previsto nos arts. 1 24 a 1 27 do CP; d) legal ou permitido: previsto no art. 1 28 do CP; e) miserável ou econômico-social: praticado por razões de miséria, incapacidade financeira de sustentar a vida futura (não exime o agente de pena, de acordo com a legislação pátria); f) eugenésico ou eugênico: praticado em face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquicas ou físicas (exculpante não acolhida pela nossa lei). A importância do assunto recai, em especial, nos casos dos fetos anencefálicos, merecendo tópico apartado no final do capítulo; g) honoris causa: realizado para interromper gravidez extramatrimonium (é crime, de acordo com nossa legislação); h) ovular. praticado até a oitava semana de gestação; i) embrionário: praticado até a décima quinta semana de gestação; j) fetal: praticado após a décima quinta semana de gestação;

 

O código penal brasileiro tipifica, no Art.124, o aborto da seguinte forma: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, como anteriormente explanado, o bem jurídico protegido do tipo é a vida humana, mas como bem lembra Bittencourt (2009):

O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção — feto ou embrião — não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.

E continua o referido autor:

O Direito Penal protege a vida humana desde o momento em que o novo ser é gerado. Formado o ovo, evolui para o embrião e este para o feto, constituindo a primeira fase da formação da vida. A destruição dessa vida até o início do parto configura o aborto, que pode ou não ser criminoso. Após iniciado o parto, a supressão da vida constitui homicídio, salvo se ocorrerem as especiais circunstâncias que caracterizam o infanticídio, que é uma figura privilegiada do homicídio (art. 123).

Portanto, protege-se um ser vivo que ainda não é pessoa, pois para tanto, é necessário o nascimento com vida (Art. 2 do Código civil), o sujeito ativo do crime de aborto pode ser tanto a gestante, no caso de autoaborto, quanto o terceiro, nos casos dos Art.125 e 126 do código penal, assim escreve Bittencourt (2009):

Sujeito ativo no autoaborto e no aborto consentido (art. 124) é a própria mulher gestante. Somente ela própria pode provocar em si mesma o aborto ou consentir que alguém lho provoque, tratando-se, portanto, de crime de mão própria. No aborto provocado por terceiro, com ou sem consentimento da gestante, sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial.

O verbo do Art. 124 do CP, que gera a adequação típica ao fato, consiste em “provocar aborto”, em outras palavras, consiste em provocar a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto, ou ainda consentir para que outro lho provoque, sendo necessário ainda o dolo da conduta (não se admite a modalidade culposa). Sobre a temática, escreve Cunha (2014, p.85):

Na primeira conduta típica, a mulher grávida, por intermédio de meios executivos químicos, físicos ou mecânicos, provoca (dá causa, promove) nela mesma, mediante ação ou omissão, a interrupção da gravidez, destruindo a vida endourerina. A segunda conduta típica é a de consentir a gestante no abortamento, exigindo-se, assim, a figura do provocador, o qual, como já vimos, responderá pelo crime do art. 1 26.

No caso do Art. 125, “provocar aborto sem o consentimento da gestante”, o legislador penal não procurou apenas proteger a vida intrauterina, como a vontade da mãe em ter a criança, por isto, diz-se que é um aborto sofrido. Por este motivo, o código penal pune com maior rigor o aborto sem o consentimento da gestante, sobre a matéria Bittencourt(2009) escreve :

O aborto sem consentimento da gestante (art. 125) — aborto sofrido — recebe punição mais grave e pode assumir duas formas: sem consentimento real ou ausência de consentimento presumido (não maior de 14 anos, alienada ou débil mental). Nessa modalidade de aborto, a ausência de consentimento constitui elementar negativa do tipo.

Para que haja a tipificação do aborto, é ainda relevante lembrar as palavras de Noronha (2007, p.52):

A gravidez há que ser normal. Difere da extrauterina e da molar. A primeira se dá no ovário, fímbria, trompas, parede uterina (interstí- cio), tendo como consequência o aborto tubário, rotura da trompa e litopédio. A segunda consiste em formação degenerativa do ovo fecundado, sendo sanguínea, carnosa e vesicular. A interrupção da gravidez extrauterina não é aborto, pois o produto da concepção não atingirá vida própria; sobrevirão, antes, consequências muito graves, matando a mulher, ou pondo em sério risco a sua vida. A expulsão da mola também não é crime, já que não existe aí vida.

Portanto é necessário que o feto tenha expectativa de vida ao nascer, para que se possa caracterizar o crime de aborto. Nesta linha é que se entendeu, na ADPF 54, julgada pelo STF, que a interrupção da gravidez no caso de anencefalia não caracteriza o tipo penal “aborto”.

 

Referencias

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v.2.
CARRARA, cit. por Nelson Hungria, op. cit. p. 275-276.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal - Parte Especial

FRANÇA, Limongi. Manual de Direito Civil. 4a ed. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

JESUS, Damasio E. de Direito penal. V.2: parte especial; Dos crimes ontra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.119.

MAGALHÃES, Noronha, Direito Penal cit., v. 2, p. 52

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocência Mártires. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva. 2014.

 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 4a ed. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Parte Geral. 38º ed. V 1. São Paulo: Saraiva. 2003. Pág. 64

 

 

 

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