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domingo, 13 de março de 2016

Infanticídio: Medicina em 1883



Infanticídio –

José Leopoldo Antunes. Medicina, Leis e Moral. Ed UNESP 1999 Pg. 75.

Em 1883 o Dr. Agostinho José de Souza Lima instava pela modificação do Código Penal, em um ponto em que a velha lei, de 1830, revelaria “doutrina incompreensível e irracional”: o infanticídio.
 
Esse crime era  previsto com a pena de três a doze anos de prisão (Atr. 197), punição bastante inferior àquela prevista pelo Art. 192 para o homicídio. Conquanto a “inocência da vítima” e sua “impossibilidade de resistência” devessem servir de agravantes ao infanticídio, a magistratura parecia considerá-lo crime “menos grave e hediondo” que o homicídio. O Presidente da Academia de Medicina sugeria a seus colegas médicos, e a D. Pedro II, ali presente, que o legislador ter-se-ia deixado levar, na distribuição das penas, pelas menores “dimensões da vítima”.

“Realmente não conhecemos nada de mais iníquo em matéria de legislação criminal” – era o comentário do editorialista da Gazeta Médica do Rio de Janeiro (isso em 1863), criticando o mesmo descompasso entre as penalidades, a propósito da resenha sobre o ensaio médico-legal publicado pelo doutor José Soriano de Souza, famoso especialista pernambucano.
Essas reclamações teriam surtido efeito em 1890, quando a nova edição do Código Penal atribuiu penalidade mais severa ao assassinato de recém-nascidos, tanto por omissão (recusar à vítima os cuidados necessários à manutenção da vida) como por comissão (emprego de meios diretos e ativos). O Art. 298 prescrevia prisão celular por 6 a 24 anos, equivalentes à punição do homicídio simples, isto é, sem agravantes, incluso no parágrafo 2º do Art. 294.

Entretanto uma exceção foi aberta para os casos em que o crime fosse perpetrado pela própria mãe, “para ocultar a desonra própria”, circunstância em que a pena era reduzida para três e nove anos de prisão.

Nos anos seguintes, essa exceção foi motivo de reclamações por parte de médicos legistas. Em 1923, o doutor Leonidas Avendaño, do Peru, apresentou ao VI Congresso Médico Latino Americano uma memória coligindo a legislação sobre o infanticídio em todos os países da América. Como preferência pessoal, ele destacava o dispositivo legal equatoriano, em que essa figura jurídica nem sequer era mencionada e o crime ficava, portanto, enquadrado como os demais homicídios. Além disso, o infanticídio era passível de punição suplementar extraordinária no Equador, em função do agravante estipulado para os assassinatos cometidos por parentes.

Em todos os demais países latinos americanos, lamentava o médico Leonidas Avendaño, impunha-se pena reduzida aos réus desse delito, aceitando como atenuantes os argumentos de defesa da honra materna e de influência do estado puerperal. Avendaño propôs que a redução de pena fosse restrita apenas às mulheres “de boa fama”, que “para ocultar a sua desonra” matassem o filho clandestinamente concebido, no momento de nascer ou imediatamente após”.

Concordando com a atual disposição do Código Penal (Art. 123) o doutor Flamínio Fávero concorda com seu texto. Em seu livro “Medicina Legal” ele diz que o infanticídio está sempre ligado “a uma falta sexual consequente à sedução, adultério, estupro, incesto” e seria “o epílogo de uma gravidez ilícita”, havendo, em relação à mulher, “uma desonra a ocultar”,  uma emoção violenta “no espírito de uma infeliz”  que não lhe soube ou não lhe pôde resistir.




 Infanticídio -

 Tratado de Obstetrícia da Febrasgo-Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia

O Direito Penal deve lançar mão das diversas ciências para manter atualizados os  seus preceitos e bem aplicar as suas normas. Com referência ao art. 123 do Código Penal, ao tratar da questão do infanticídio, torna-se importante para os profissionais que atuam na área o conhecimento da visão da medicina dobre o a puerperalidade. Para colaborar na divulgação dos conceitos mais modernos comentamos para fins de estudo alguns tópicos do Tratado de Obstetrícia da Febrasgo-Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia:

SÍNDROME DA TRISTEZA PÓS-PARTO
O texto chama a atenção para o fato de que a gravidez pode representar um momento de crise para a gestante, crise essa entendida como um perturbação passageira de um estado de equilíbrio. É interessante notar que Erich Fromm em seu estudo sobre as consequências de uma agressão já havia registrado que no homem  cada novo estado de desequilíbrio força o homem a procurar um equilíbrio novo. Muitas vezes, quando forçado a encontrar uma nova solução, o homem avança rumo a uma situação de impasse, de que tem de livrar-se para reencontrar o seu equilíbrio. Na gestante a gravidez pode soar como uma crise, entendida como um momento transitório de perturbação de um estado de equilíbrio. A perturbação pode ter lugar na mudança do papel de esposa para um novo, totalmente diferente e irreversível, de mãe. Isso além das inegáveis mudanças econômicas em sua vida e, ao lado de novas relações afetivas, a perda ou alterações nas antigas. Pode ocorrer, então, uma fase de relativa desorganização pessoal se a mãe já convive com os demais em um nível neuroticamente constituído.

Tal fato que conduz a uma fase melancólica, conhecida como “maternity blues” ou simplesmente blues. Esse nome derivado de um gênero de música norte americano que possui um colorido de lamento, dor e tristeza característicos.
Os autores esclarecem: “Ao observarmos com sensibilidade e atenção uma paciente puérpera, podemos notar não raramente variações de estado de humor, com tendência à depressão, labilidade emocional, expressões, falas, gestos e condutas que evidenciam todo o complexo da nova situação vivenciada -, a adaptação a ela -, não só do ponto de vista biológico, mas emocional e social.

Ora, isso pode contrastar com a realidade concreta vivida com a presença do bebê sadio e desejado, constituindo “matéria prima” para vivências conflitivas que mobilizam auto-reprovação, constrangimento e sentimento de culpa na mente da paciente e que, com freqüência é pouco entendida e compreendida pelo marido e/ou companheiro e familiares que podem complicar mais a situação.”
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Esclarecem ainda que “A ação terapêutica do obstetra consiste em poder propiciar que nessa oportunidade a paciente fale, pense e, portanto, elabore sua intimidade em conflito com alguém que a compreenda neste estado e possa ajudá-la a sair dele, utilizando seus próprios recursos mentais e não tendo o médico que resolver por ela.

O blues pode, eventualmente, ter sintomatologia mais séria que simples tendências e oscilações depressivas do humor, como, por exemplo, ideação hipocondríaca, insônia, além de vivência de desrealização e despersonalização. Costumam iniciar nos primeiros dias do puerpério e remir em duas semanas aproximadamente. São auto-resolutivas e não costumam deixar sequelas do ponto de vista psicopatológico clínico, porém é necessária a abordagem adequada do obstetra como medida de prevenção das dificuldades psicodinâmicas na relação mãe-bebê ou mesmo evitar evolução eventual para psicose puerperal.”


DEPRESSÃO PUERPERAL OU DEPRESSÃO NEURÓTICA PÓS-PARTO

A depressão puerperal ou depressão neurótica pós-parto  - esclarecem os autores – “é uma intercorrência cujo quadro clínico é de descrições pouco consistentes e semelhantes ao blues puerperal, só que de modo mais intenso e estruturado, onde se fala em angústia e irritabilidade correlata, mascarando a depressão, depressão ansiosa e depressão atípica por não piorar no fim do dia e começar com insônia etc., mas que é um quadro depressivo sem melancolia ou psicose.

A paciente apresenta-se triste, com humor depressivo, labilidade emocional, estados mentais instáveis, anorexia, insônia, auto-acusações e reprovações, sentimentos de não ser ”suficientemente boa” ou “adequadamente” mãe para cuidar de seu bebê, amamentá-lo ou amá-lo.  Enfim, fantasias que põem a puerpéra em situações muito desconfortáveis perante ela mesma e a maternidade, não podendo usufruir a realidade vivida, vivenciando-a de modo sofrido e angustiado.

Aqui também está presente e de modo mais intenso o anteriormente referido conflito entre a vivência do estado depressivo contrastando com a situação de realidade de ter tido um filho saudável e desejado conscientemente, agravado pelas incompreensões, cobranças e até hostilidade por parte do marido, companheiro e de familiares, como mãe e sogra, ficando a paciente constrangida ou muito envergonhada de sentir-se assim.

Entre outros os autores consideram fatores preditivos ou de risco:

a)   Episódios depressivos pretéritos;
b)   Estados depressivos e ansiosos durante o ciclo gravídico-puerperal, emergentes da dinâmica e conflitiva pessoal;
c)    Crises conjugais relacionadas ou desencadeadas com a situação vivida;

O diagnóstico diferencial deve ser feito com o blues puerperal.

São quadros mais duradouros, mais estruturados psicopatologicamente, que podem se cronificar se não bem orientados, com consequências não só para a paciente, mas para o desenvolvimento emocional e cognitivo do filho.”

Para o advogado merecem especial atenção as psicoses puerperais ou distúrbios afetivos psiótico-puerperal.

Nestas, diferentemente das duas primeiras entidades, que são distorções emocionais da realidade em níveis distintos, encontramos “rotura com a realidade. As formas clínicas são várias, semiologicamente não se distinguem dos quadros habituais, como já referimos, e há um predomínio das alterações de humor, com tendência à depressão, sintomas produtivos como ideação delirante, de caráter depressivo ou persecutório, alucinações auditivas e visuais, aceleração, lentificação e desagregação do pensamento, além de agitação psicomotora eventual.”

Na hipótese, continuam, “são possíveis, portanto, os diagnósticos de depressão psicótica, surtos maníacos e quadros esquizomórfos ou esquizoa-afetivos puerperais. Iniciam-se de modo abrupto nas duas ou três primeiras semanas pós-parto e podem, com frequencia, ter pródomos que podem sugerir, de início enfermidades menos graves, como labilidade emocional, insônia, cefaléia, inquietação ou retraimento.

O que há de específico e frequente nestes delírios e alucinações é o seu conteúdo com referência à gravidez, parto e ao neonato. Há uma tendência a negação do ocorrido e franca agressividade e hostilidade dirigidos à criança, numa clara evidência, como já observamos antes, da patologia do vínculo mãe-bebê, parâmetro de saúde-doença, fundamental neste período.

Como realmente há risco de agressões e até morte do neonato por parte da mãe, é preciso, nos casos de maior comprometimento psicopatológico, de maior desagregação da personalidade, separar o bebê da mãe, embora se saiba que isso pode contribuir para manutenção de sua doença. Trata-se de uma situação que exige especial atenção dos profissionais nela envolvidos, e a questão prioritária é resguardar o bebê por motivos óbvios. Com o decorrer do tratamento psiquiátrico em regime de internação, procura-se fazer a reaproximação aos poucos e sob vigilância cuidadosa e constante de profissionais habilitados.


Matar um filho nesse período é sintoma de doença mental grave, tanto é que no Código Penal Brasileiro tais fatos perpretados pela mãe não são passíveis de penalização, cabendo, na linguagem jurídica o que se chama de medida de segurança: traduzindo em linguagem médica, significa reclusão para tratamento em instituição adequada.”

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