Infanticídio –
José Leopoldo Antunes. Medicina,
Leis e Moral. Ed UNESP 1999 Pg. 75.
Em 1883 o Dr. Agostinho José de
Souza Lima instava pela modificação do Código Penal, em um ponto em que a velha
lei, de 1830, revelaria “doutrina incompreensível e irracional”: o
infanticídio.
Esse crime era
previsto com a pena de três a doze anos de prisão (Atr. 197), punição
bastante inferior àquela prevista pelo Art. 192 para o homicídio. Conquanto a
“inocência da vítima” e sua “impossibilidade de resistência” devessem servir de
agravantes ao infanticídio, a magistratura parecia considerá-lo crime “menos
grave e hediondo” que o homicídio. O Presidente da Academia de Medicina
sugeria a seus colegas médicos, e a D. Pedro II, ali presente, que o legislador
ter-se-ia deixado levar, na distribuição das penas, pelas menores “dimensões da
vítima”.
“Realmente não conhecemos nada de mais iníquo em
matéria de legislação criminal” – era o comentário do editorialista da Gazeta
Médica do Rio de Janeiro (isso em
1863), criticando o mesmo descompasso entre as penalidades, a propósito da
resenha sobre o ensaio médico-legal publicado pelo doutor José Soriano de
Souza, famoso especialista pernambucano.
Essas reclamações teriam surtido efeito em 1890, quando a nova edição do Código
Penal atribuiu penalidade mais severa ao assassinato de recém-nascidos, tanto
por omissão (recusar à vítima os cuidados necessários à manutenção da vida)
como por comissão (emprego de meios diretos e ativos). O Art. 298 prescrevia
prisão celular por 6 a 24 anos, equivalentes à punição do homicídio simples,
isto é, sem agravantes, incluso no parágrafo 2º do Art. 294.
Entretanto uma exceção foi aberta para os casos em que
o crime fosse perpetrado pela própria mãe, “para ocultar a desonra própria”, circunstância em que a pena era
reduzida para três e nove anos de prisão.
Nos anos seguintes, essa exceção foi motivo de
reclamações por parte de médicos legistas. Em 1923, o doutor Leonidas Avendaño,
do Peru, apresentou ao VI Congresso Médico Latino Americano uma memória
coligindo a legislação sobre o infanticídio em todos os países da América. Como
preferência pessoal, ele destacava o dispositivo legal equatoriano, em que essa
figura jurídica nem sequer era mencionada e o crime ficava, portanto,
enquadrado como os demais homicídios. Além disso, o infanticídio era passível
de punição suplementar extraordinária no Equador, em função do agravante
estipulado para os assassinatos cometidos por parentes.
Em todos os demais países latinos americanos,
lamentava o médico Leonidas Avendaño, impunha-se pena reduzida aos réus desse
delito, aceitando como atenuantes os
argumentos de defesa da honra materna e de influência do estado puerperal. Avendaño
propôs que a redução de pena fosse restrita apenas às mulheres “de boa fama”, que “para ocultar a sua desonra” matassem o filho clandestinamente concebido, no momento de nascer ou
imediatamente após”.
Concordando com a atual disposição do Código Penal
(Art. 123) o doutor Flamínio Fávero concorda com seu texto. Em seu livro “Medicina
Legal” ele diz que o infanticídio está sempre ligado “a uma falta sexual consequente à sedução, adultério, estupro, incesto”
e seria “o epílogo de uma gravidez
ilícita”, havendo, em relação à mulher, “uma desonra a ocultar”, uma
emoção violenta “no espírito de uma
infeliz” que não lhe soube ou não
lhe pôde resistir.
Infanticídio -
Tratado de Obstetrícia da Febrasgo-Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia
O Direito Penal deve lançar mão
das diversas ciências para manter atualizados os seus preceitos e bem aplicar as suas normas.
Com referência ao art. 123 do Código Penal, ao tratar da questão do
infanticídio, torna-se importante para os profissionais que atuam na área o
conhecimento da visão da medicina dobre o a puerperalidade. Para colaborar na
divulgação dos conceitos mais modernos comentamos para fins de estudo alguns
tópicos do Tratado de Obstetrícia da
Febrasgo-Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia:
SÍNDROME DA TRISTEZA
PÓS-PARTO
O texto chama a atenção para o
fato de que a gravidez pode representar um momento de crise para a gestante,
crise essa entendida como um perturbação passageira de um estado de equilíbrio.
É interessante notar que Erich Fromm em seu estudo sobre as consequências de
uma agressão já havia registrado que no homem
cada novo estado de
desequilíbrio força o homem a procurar um equilíbrio novo. Muitas vezes, quando
forçado a encontrar uma nova solução, o homem avança rumo a uma situação de
impasse, de que tem de livrar-se para reencontrar o seu equilíbrio. Na gestante
a gravidez pode soar como uma crise, entendida como um momento transitório de
perturbação de um estado de equilíbrio. A perturbação pode ter lugar na mudança
do papel de esposa para um novo, totalmente diferente e irreversível, de mãe.
Isso além das inegáveis mudanças econômicas em sua vida e, ao lado de novas
relações afetivas, a perda ou alterações nas antigas. Pode ocorrer, então, uma
fase de relativa desorganização pessoal se a mãe já convive com os demais em um
nível neuroticamente constituído.
Tal fato que conduz a uma fase
melancólica, conhecida como “maternity
blues” ou simplesmente blues.
Esse nome derivado de um gênero de música norte americano que possui um
colorido de lamento, dor e tristeza característicos.
Os autores esclarecem: “Ao
observarmos com sensibilidade e atenção uma paciente puérpera, podemos notar
não raramente variações de estado de humor, com tendência à depressão,
labilidade emocional, expressões, falas, gestos e condutas que evidenciam todo
o complexo da nova situação vivenciada -, a adaptação a ela -, não só do ponto
de vista biológico, mas emocional e social.
Ora, isso pode contrastar com a
realidade concreta vivida com a presença do bebê sadio e desejado, constituindo
“matéria prima” para vivências conflitivas que mobilizam auto-reprovação, constrangimento
e sentimento de culpa na mente da paciente e que, com freqüência é pouco
entendida e compreendida pelo marido e/ou companheiro e familiares que podem
complicar mais a situação.”
(...)
Esclarecem ainda que “A ação
terapêutica do obstetra consiste em poder propiciar que nessa oportunidade a
paciente fale, pense e, portanto, elabore sua intimidade em conflito com alguém
que a compreenda neste estado e possa ajudá-la a sair dele, utilizando seus
próprios recursos mentais e não tendo o médico que resolver por ela.
O blues pode, eventualmente, ter sintomatologia mais séria que
simples tendências e oscilações depressivas do humor, como, por exemplo,
ideação hipocondríaca, insônia, além de vivência de desrealização e
despersonalização. Costumam iniciar nos primeiros dias do puerpério e remir em
duas semanas aproximadamente. São auto-resolutivas e não costumam deixar
sequelas do ponto de vista psicopatológico clínico, porém é necessária a
abordagem adequada do obstetra como medida de prevenção das dificuldades
psicodinâmicas na relação mãe-bebê ou mesmo evitar evolução eventual para
psicose puerperal.”
DEPRESSÃO PUERPERAL OU DEPRESSÃO NEURÓTICA PÓS-PARTO
A depressão puerperal ou depressão neurótica pós-parto - esclarecem os autores – “é uma
intercorrência cujo quadro clínico é de descrições pouco consistentes e
semelhantes ao blues puerperal, só
que de modo mais intenso e estruturado, onde se fala em angústia e
irritabilidade correlata, mascarando a depressão, depressão ansiosa e depressão
atípica por não piorar no fim do dia e começar com insônia etc., mas que é um
quadro depressivo sem melancolia ou psicose.
A paciente apresenta-se triste,
com humor depressivo, labilidade emocional, estados mentais instáveis,
anorexia, insônia, auto-acusações e reprovações, sentimentos de não ser
”suficientemente boa” ou “adequadamente” mãe para cuidar de seu bebê,
amamentá-lo ou amá-lo. Enfim, fantasias
que põem a puerpéra em situações muito desconfortáveis perante ela mesma e a
maternidade, não podendo usufruir a realidade vivida, vivenciando-a de modo
sofrido e angustiado.
Aqui também está presente e de
modo mais intenso o anteriormente referido conflito entre a vivência do estado
depressivo contrastando com a situação de realidade de ter tido um filho
saudável e desejado conscientemente, agravado pelas incompreensões, cobranças e
até hostilidade por parte do marido, companheiro e de familiares, como mãe e
sogra, ficando a paciente constrangida ou muito envergonhada de sentir-se
assim.
Entre outros os autores consideram
fatores preditivos ou de risco:
a) Episódios
depressivos pretéritos;
b) Estados
depressivos e ansiosos durante o ciclo gravídico-puerperal, emergentes da
dinâmica e conflitiva pessoal;
c) Crises
conjugais relacionadas ou desencadeadas com a situação vivida;
O diagnóstico diferencial deve
ser feito com o blues puerperal.
São quadros mais duradouros, mais
estruturados psicopatologicamente, que podem se cronificar se não bem
orientados, com consequências não só para a paciente, mas para o
desenvolvimento emocional e cognitivo do filho.”
Para o advogado merecem especial
atenção as psicoses puerperais ou
distúrbios afetivos psiótico-puerperal.
Nestas, diferentemente das duas
primeiras entidades, que são distorções emocionais da realidade em níveis
distintos, encontramos “rotura com a realidade. As formas clínicas são várias,
semiologicamente não se distinguem dos quadros habituais, como já referimos, e
há um predomínio das alterações de humor, com tendência à depressão, sintomas
produtivos como ideação delirante, de caráter depressivo ou persecutório,
alucinações auditivas e visuais, aceleração, lentificação e desagregação do
pensamento, além de agitação psicomotora eventual.”
Na hipótese, continuam, “são
possíveis, portanto, os diagnósticos de depressão psicótica, surtos maníacos e
quadros esquizomórfos ou esquizoa-afetivos puerperais. Iniciam-se de modo
abrupto nas duas ou três primeiras semanas pós-parto e podem, com frequencia,
ter pródomos que podem sugerir, de início enfermidades menos graves, como
labilidade emocional, insônia, cefaléia, inquietação ou retraimento.
O que há de específico e
frequente nestes delírios e alucinações é o seu conteúdo com referência à
gravidez, parto e ao neonato. Há uma tendência a negação do ocorrido e franca
agressividade e hostilidade dirigidos à criança, numa clara evidência, como já
observamos antes, da patologia do vínculo mãe-bebê, parâmetro de saúde-doença,
fundamental neste período.
Como realmente há risco de
agressões e até morte do neonato por parte da mãe, é preciso, nos casos de
maior comprometimento psicopatológico, de maior desagregação da personalidade,
separar o bebê da mãe, embora se saiba que isso pode contribuir para manutenção
de sua doença. Trata-se de uma situação que exige especial atenção dos
profissionais nela envolvidos, e a questão prioritária é resguardar o bebê por
motivos óbvios. Com o decorrer do tratamento psiquiátrico em regime de
internação, procura-se fazer a reaproximação aos poucos e sob vigilância
cuidadosa e constante de profissionais habilitados.
Matar um filho nesse período é
sintoma de doença mental grave, tanto é que no Código Penal Brasileiro tais
fatos perpretados pela mãe não são passíveis de penalização, cabendo, na
linguagem jurídica o que se chama de medida de segurança: traduzindo em linguagem
médica, significa reclusão para tratamento em instituição adequada.”
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