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sexta-feira, 28 de abril de 2017

Transfusão de sangue


Magistrado julga improcedente pedido para autorização de transfusão de sangue em testemunha de Jeová.



Nº Processo: 2009.1.049843-2 

AUTOR: HOSPITAL OPHIR LOYOLA 

ADVOGADO: PAULO ROMERO FAGUNDES JUNIOR 

RÉU: EDVALDINA TAVARES ASEVEDO 

Data: 20/11/2009 

SENTENÇA TIPO A COM MÉRITO

Vistos etc. 

Cuida-se de Ação Cautelar inominada com pedido de liminar interposta por HOSPITAL OPHIR LOYOLA em face de EDVALDINA TAVARES ASEVEDO. 

Aduz a inicial, que a requerida é paciente daquele hospital e está acometida de osteorssacoma metastático pulmonar, uma doença grave, correndo sérios riscos de vida e submetida a tratamento quimioterápico, neutropenia e plaquetopenia. Que a paciente se encontrava com um quadro de hemorragia grave, sendo empregados medicamentos para evitar a necessidade de transfusão de sangue, uma vez que a mesma é seguidora da religião Testemunha de Jeová. Que a requerida pode a qualquer momento sofrer distúrbio hemorrágico incontrolável e que desta forma será imperiosa uma transfusão sanguínea. Requer por fim, a liminar e a procedência da ação. 

Documentos acostados às fls. 8/49. 

Contestação às fls. 50/71, juntando documentos até fls. 224, em que o contestante alega: a) preliminarmente, o descabimento da ação cautelar, tendo em vista que é satisfativa e consequentemente há ausência de interesse de agir. b) Inépcia da inicial por falta de correlação entre narração dos fatos e conclusão. c) No mérito, requer a improcedência do pedido. 

Réplica às fls. 226/231. 

O Ministério Público ofertou parecer às fls. 233. 

Vieram-me os autos conclusos para prolatação de sentença. 

É o relatório. 

Passo a decidir. 

Indefiro a preliminar de descabimento da ação cautelar no caso concreto. 

A pletora de situações e circunstâncias da vida fazem por vezes que o Judiciário reconheça a autonomia da pretensão cautelar. 

Embora não reconhecida uma verdadeira autonomia da referida ação em nossa legislação processual, é induvidoso que há fatos que exigem uma decisão cautelar autônoma por sua natureza e eficácia no tempo. 

Tome-se como exemplo as cautelares que visam salvaguardar a vida do jurisdicionado. Encetando um resultado positivo a que se prestaria uma ação principal? Apenas para atender formalmente a um dispositivo legal com mais custos e demanda de tempo? Em caso de improvimento final do direito pleiteado como ficaria então a parte que sofreu o ônus da liminar? Tal prejuízo se resolve em perdas e danos, garantindo-se ao fim e ao cabo a vida do autor, evidentemente observado o caso concreto e as disposições legais pertinentes ao fato. 

Esta é a lição de Ovídio Batista ao afirmar a existência de cautelares autônomas: Nosso Código de Processo Civil não reconhece, como acabamos de ver, uma autêntica autonomia à ação cautelar, a ponto de poder ela prescindir de um processo satisfativo, dito principal, de modo que a tutela obtida através de demanda cautelar pudesse bastar-se a si mesma a não carecesse a tutela outorgada a ser confirmada pela sentença do processo principal. 

Todavia, queira ou não queira o legislador, esta autonomia existe em inúmeros casos, sem que nossa lei ou a própria doutrina sejam capazes de contrariar a realidade e a própria natureza das coisas. 

A seguir, o ilustre Professor passa a listar alguns casos em concreto como as ações de asseguração ad perpetuam de provas, a conhecida produção antecipada de provas, termo refutado pelo referido processualista. Lista ainda as cauções entre elas a caução de dano iminente (cautio damni infecti) contidas nos artigos 1.280 e 1.281 do Código Civil atual. Por fim, afirma: O elenco de possíveis ações cautelares inominadas é inegostável, enquanto se definam como tutela assegurativa de direitos e pretensões de direito material e até mesmo de pretensões processuais. 

Além dessas que foram indicadas como cautelares autônomas, muitas outras poderiam ser arroladas, a maioria delas como medidas preparatórias ou incidentes, algumas com tutela cautelar autônoma. (idem p. 128). 

Assim sendo, não procede a preliminar de não cabimento da ação cautelar por ser a mesma satisfativa. 

Quanto ao argumento de perda de objeto tenho que também esta não se operou. 

O termo de alta hospitalar constante às fls. 84 afirma que a condição da paciente é melhorado entre as alternativas pré-lançadas no termo (as outras são: curado, inalterado e óbito) e não melhorando, conforme informou a contestação, sendo diagnosticado na alta hospitalar, osteossarcoma com metástase pulmonar. 

Ao relatar o tratamento fornecido o termo de alta afirma ter sido ministrada medicação p/ dor. Que a paciente tem anemia, porém devido à religião não fez hemoderivados. (fls. 84). 

Portanto, a ação não perdeu objeto, pois, embora a paciente tenha tido alta sem que a transfusão sanguínea tenha sido feita, não significa que a mesma esteja curada, e, portanto, a qualquer momento pode ser obrigada a retornar ao hospital para procedimentos de urgência, exigindo-se uma decisão que ainda está vinculada aos fatos deste processo por nexo direto de causalidade. 

Portanto, ainda estão presentes a fumaça do direito e o perigo na demora da decisão judicial. Assim sendo, esta ação não perdeu objeto. Quanto a segunda preliminar, também indefiro. 

Não vislumbro confusão na petição inicial. Esta afirma que a paciente está com um quadro de hemorragia grave, sendo empregados medicamentos para evitar a necessidade de transfusão de sangue e que pode sofrer a qualquer momento distúrbios hemorrágicos incontroláveis, sendo imperiosa uma transfusão sanguínea, não havendo qualquer outro meio de salvar-lhe a vida. 

Não vejo necessidade de explicitar o que já está claro. Não se trata de edição do texto, mas, de compreensão do objeto do pedido. 

Havia um sangramento com tentativa de utilização de medicamentos para estancá-la, porém, com risco de tornar-se incontrolável, haveria a necessidade de transfusão de sangue. 

Vencidas as preliminares, passo ao mérito. 

O cerne da questão gira em torno do fato de que a requerida se recusa a aceitar transfusão de sangue em caso de orientação da equipe médica neste sentido, mesmo que isto signifique risco de vida para a paciente. 

A requerida tem 19 anos, é adulta e capaz. Tomou a decisão livre de não se submeter aos tratamentos indicados em caso de anemia aguda, exceto, recuperação intra-operatória de células, hemodiluição, máquina coração-pulmão, podendo aceitar ou não, alguns procedimentos médicos que envolvam o uso de seu sangue, sendo que os pormenores devem ser considerados com a requerida, se a mesma estiver consciente, e com seu procurador caso esteja inconsciente, proibindo expressamente que o mesmo desconsidere sua vontade (fl. 86). 

Eis o cerne da questão: É justificável perante o ordenamento jurídico a recusa de paciente a determinado tratamento/procedimento terapêutico neste caso a transfusão de sangue sob o argumento do direito à liberdade de escolha, dignidade da pessoa humana ou ainda convicções morais ou religiosas ou ainda ambas concomitantemente? Embora tenha sido muito habilidosa a contestação em não polarizar a discussão jurídica a partir da dicotomia direito à liberdade de convicção religiosa/direito à vida, buscando demonstrar que o arcabouço jurídico pátrio é suficiente para dirimir a questão a partir de outros princípios, não há dúvidas que a questão de fundo tem por argumento a convicção religiosa da requerida. Isto fica definitivamente demonstrado quando a contestação afirma que: Como Testemunha de Jeová, a requerida procura harmonizar ao máximo a sua vida com os princípios contidos na bíblia, o que inclui observar o mandamento escrito pelo médico Lucas de abster-se de sangue (Atos 15: 28 e 29 citado literalmente na nota de rodapé), o qual é reafirmado em todo o conjunto dos escritos bíblicos (grifo nosso) (fls. 53/54). 

O texto bíblico citado diz o seguinte: Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além dessas coisas essenciais: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde. (At 15: 28 e 29). 

Pouco importa o que outro intérprete por melhor e mais hermenêuticos que sejam seus argumentos pense a respeito do ordenamento e da extensão contido no texto bíblico. Tal discussão de cunho moral-religioso seria infrutífero para decidir a questão judicial na medida em que a Constituição Federal garante em seu artigo 5º a inviolabilidade do direito à liberdade, inclusive de manifestação do pensamento (inc. IV) e que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (inc. VIII). 

Em resumo, por convicção religiosa o crente poderá não somente crer, mas, divulgar sua crença a partir de interpretação do texto que entender ser sua regra de fé e prática, desde que tal conduta não viole outros dispositivos contidos na Constituição Federal, sendo este o limite de sua liberdade. Sendo assim, a interpretação do texto bíblico não importa ao deslinde da questão. Então de que forma se dará resposta à lide? Embora a questão de fundo da recusa seja religiosa, como dito antes, entendo que a resposta deve ser dada pelo direito a partir dos princípios inseridos na Carta Magna, entretanto, não se deve caminhar pela técnica da ponderação, seja de princípios, o que por si só já seria um erro metodológico, nem da técnica de ponderação de valores ínsitos a estes princípios, que perderiam por isto sua função normativa, embora tornasse mais fácil o julgamento da ação pelos diversos caminhos que a discricionariedade proporcionaria ao julgador, entretanto, correndo-se sérios riscos de optar-se por uma solução fora do âmbito democrático, fora do alcance da autonomia do direito fazendo exsurgir à vontade e ânimo de foro íntimo do julgador. 

A lição de Eros Grau a respeito é contundente: Daí que os juízos de ponderação entre princípios de direito extirpam seu caráter de norma jurídica. Pretendo, com isto, que princípios de direito não podem, enquanto princípios, ser ponderados entre si. Apenas valores podem ser submetidos a essa operação. Dizendo-o de outro modo, a ponderação entre eles esteriliza o caráter jurídico-normativo que os definia como norma jurídica. Curiosamente, os princípios são normas, mas, quando em conflito uns com os outros, deixam de sê-lo, funcionando então como valores. 

A doutrina tropeça em si mesma ao admitir que os princípios, embora sejam normas jurídicas, não são normas jurídicas... Quanto à normatividade dos princípios afirma Lenio Streck: ...em Dworkin a normatividade assumida pelos princípios possibilita um fechamento interpretativo próprio da blindagem hermenêutica contra discricionarismos judiciais. Essa normatividade não é oriunda de uma operação semântica ficcional como se dá com a teoria dos princípios de Alexy. Ao contrário, ela retira seu conteúdo normativo de uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade... Esse seja talvez o aspecto mais importante a diferenciar o pós-positivismo do positivismo, problema central no debate Dworkin-Hart. Sob a ótica positivista um princípio não é norma porque ele trata de uma espécie de adereço do direito. Daí que para o ilustre Professor os princípios são deontológicos, criticando o que passa a chamar de panprincipiologismo. Portanto será de suma importância a normatização do fato. A compreensão da singularidade do fato a partir da interpretação que justifique a decisão judicial. 

Dito isto, não estamos diante da simples questão de ponderar se o direito à vida deve prevalecer sobre o direito à livre convicção religiosa. Não vejo sequer antinomia neste caso, senão aparente. Diga-se também que não se cuida de análise de um fato relacionado a relativismo cultural. Em primeiro lugar porque se cuida de uma cultura vivenciada em uma comunidade específica no interior de um sistema multicultural como o brasileiro, em segundo lugar porque não pregam uma rejeição sistemática à medicina senão de um procedimento específico (a transfusão sanguínea) fundada em interpretação bíblica, em terceiro lugar porque buscam vínculos normatizantes entre direitos positivados e sua interpretação, propondo fundamentar uma conduta baseada em dogma de fé a partir do direito em vigor em cada país onde atua, não sendo, portanto, simples postulado de primado do coletivismo (Flávia Piovesan, 2009) nos termos propostos pela percepção de Jack Donnelly (apud Flávia Piovesan, 2009). 

Por fim, não se pode confundir o relativismo cultural com o pluralismo cultural que nas palavras de Perez Luño assim se diferenciam: El pluralismo cultural, o sea, el reconocimiento de uma realidad plural de tradiciones e instituciones políticas y culturales, no debe confundirse com el relativismo cultural, es decir, com el mito de que todas las formas culturales poseen idêntico valor. Constituye uma evidencia histórica insoslayable que no todas las culturas han contribuído em la mesma medida a la formación, desarollo y defensa de los valores de la humanidad. Fica claro, enfim, que a convicção religiosa da requerente não faz apologia a qualquer tipo de doença, mas rejeita uma única terapia oferecida pela medicina, o que por si só faz com que não se possa falar em violação ao universalismo dos direitos humanos, pois a requerente busca voluntariamente ser inserida neste contexto a partir do respeito ao direito fundamental que postula (de ter sua convicção religiosa respeitada) sem ferir o mínimo ético exigido pela universalidade dos direitos humanos. Enfim, o fato. Toda esta propedêutica decisória tem o sentido de demonstrar que o fato será cotejado não somente por princípios, mas a partir de todo o arcabouço positivo do direito e sua fundamentação principiológica, não se apegando a uma simples ponderação de princípios ou valores dicotomicamente representados por direito a vida vs. convicção religiosa. 

Cuida-se, portanto, da tensão criada entre os médicos que indicam a transfusão como imprescindível à manutenção da vida da paciente e a resistência desta, requerendo a prática de tratamentos alternativos que dispensem a utilização de sangue. 

Conforme documento acostado à contestação (fl. 92) as testemunhas de Jeová fazem parte de uma seita cristã que foi fundada no final da década de 1870 por Charles Russel em Pittsburgh, Pensilvânia, EUA. O que começou como um pequeno grupo de estudo da Bíblia, tornou-se uma seita religiosa que atualmente inclui mais de 2,6 milhões membros no mundo inteiro. A recusa das testemunhas de Jeová em receber transfusões de sangue remonta a uma decisão da igreja de 1945. 

No caso trazido a juízo a insistência dos médicos em que haja uma determinação judicial para a transfusão visa resguardá-los de eventuais ações futuras pelo desrespeito à vontade do paciente. 

Fundamentam seu inconformismo diante de normas, regulamentos, leis, Constituição Federal e até no juramento de Hipócrates para afirmar que não podem deixar de agir em casos extremos onde não haja outra alternativa. 

Sobre o direito à vida forte a Constituição Federal de 1988 no caput do artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso). Quanto à saúde a CFRB assim se expressa em seu artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifo nosso). 

Dito isto, vejamos o que significa tais expressões fazendo-se o cotejo com outros instrumentos normativos à luz de sua própria constitucionalidade, partindo-se dos fundamentos de pretensão e resistência contidos nos autos. 

Como afirma o Prof. Eros Grau em seu discurso, não se interpreta o direito em tiras. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele do texto até a Constituição. Os médicos afirmam que prestaram juramento de defender e lutar pela vida até as últimas conseqüências. O Juramento de Hipócrates data do século V a.C., e, embora tenha afastado a religião e a magia do nexo causal entre doença e cura o juramento é feito em nome de Apolo Médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com conhecimentos do médico e a critério deste, o juramento. O juramento é longo e prevê detalhes da atuação médica no campo deontológico até o detalhe de não permitir que se use a medicina para manter o médico relação sexual com seus pacientes, sejam eles livres ou escravos. A atualidade de tal juramento chega a impressionar, talvez por isto tenha tanta importância ao longo dos tempos. A Revista Paraense de Medicina traz interessante estudo a respeito do referido Juramento. 

Segundo a revista, o juramento hipocrático, é considerado um patrimônio da humanidade por seu elevado sentido moral e durante séculos tem sido repetido como um compromisso solene dos médicos ao ingressarem na profissão. Informa ainda que com uma ou outra variação é este o texto utilizado pela maioria das universidades brasileiras: Prometo que ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, os quais terei como preceito de honra. Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre, a minha vida e a minha arte, com boa reputação entre os homens. Se o infringir ou dele afastar-me, suceda-me o contrário." O texto prossegue firmando que a Declaração de Genebra, a mais antiga de todas, tem sido utilizada em vários países na recepção aos novos médicos cuja versão em português tem a seguinte redação: "Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra." 

Em 1994, a Assembléia Geral da Associação Médica Mundial modificou ligeiramente o texto. Sua versão em português ficou com a seguinte redação: No momento de me tornar um profissional médico: Prometo solenemente dedicar a minha vida a serviço da Humanidade. Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu paciente será minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do paciente, respeitarei os segredos que a mim foram confiados. Manterei, por todos os meios ao meu alcance, a honra da profissão médica. Os meus colegas serão meus irmãos. Não deixarei de exercer meu dever de tratar o paciente em função de idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições sociais ou econômicas. Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. Faço essas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra." 

Ninguém duvida do caráter deontológico de tal juramento. Tem natureza ética o referido juramento. Sendo assim, a quem se jura? Sendo o Estado laico e a maioria dos Estados o são, se jura para quem e em nome de quem? Não há dúvidas que na modernidade o referido juramento se reporta à consciência do profissional como uma bússola a guiar-lhe em meio às intempéries da profissão. É a si próprio e à sociedade que faz tal juramento, estando vinculado ao mesmo, pela lei universal da consciência, no melhor estilo Kantiano. Sendo assim, tal juramento adquire uma força moral que avança na direção de ser cumprido à frente de óbices que impedem o livre exercício da medicina. Mas o que é mesmo que diz tal juramento? Qual seu conteúdo? O médico ao jurar que não deixará de exercer o seu dever em função de crença religiosa pode ter diversos significados e aplicações, entretanto, a modernidade manteve subjacente a suas práticas diferenças e discriminações de toda ordem, inclusive religiosa, e me parece claro que tal juramento está relacionado ao fato do médico dever atendimento a qualquer ser humano, ainda que este (o paciente) seja de uma religião que cause qualquer tipo de desconforto no profissional da medicina. Apenas e tão somente para deixar mais claro: Um judeu deixar de atender um muçulmano ou vice-versa; Um católico deixar de clinicar um protestante ou vice-versa; um Hindu deixar de medicar um Budista ou vice-versa; Um xintoísta deixar de atender um ateu ou vice-versa; um gnóstico deixar de atender um agnóstico etc. Enfim, o que me parece claro é que este juramento tem que ser analisado a partir de seu sentido ético (é para isto que existe) e não se pode crer que no juramento de Hipócrates a defesa da vida tenha apenas um caráter biológico, senão que deve também respeitar a dignidade desta vida como se verá adiante. E porque digo isto? Porque o direito não se interpreta em tiras, em pedaços. Toda norma, ainda que moral ou ética, deve ter um fundamento lógico explicável, por mais absurdo que seja, sob pena de tornar-se dogma de fé, o que não é o caso do juramento de Hipócrates. Por isto, o médico promete o respeito absoluto pela vida humana e jamais fazer uso dos seus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. 

O direito à vida deve ser compreendido como direito à vida digna e este direito é uma lei fundamental positivada em nosso ordenamento. Uma das mais importante leis da humanidade é a autodeterminação do ser humano. 

O professor Perez Luño ao falar sobre a dignidade da pessoa humana afirma que: El concepto de dignidad humana, por tanto, se halla estrechamente vinculado, en el pensamiento de KANT, a las nociones de persona y de personalidad. La dignidade constituye, en la teoria kantiana, la dimensión moral de la personalidad, que tiene por fundamento la propria libertad y autonomia de la persona. La dignidad humana entraña no sólo la garantia negativa de que la persona no va a ser objeto de ofensas o humillaciones, sino que suporte también la afirmación positiva del pleno desarrollo de la personalidad de cada individuo.

Portanto o conceito moderno de lei da humanidade, seja no sentido Kantiano seja positivado, não visa simplesmente proteger a vida, mas proteger a vida digna. Logo, não há argumento em face de tal juramento que impeça o médico de respeitar a vontade do paciente em não receber a transfusão de sangue. A resolução 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina ao analisar caso análogo decidiu: 2 - O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la. O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código. No fundamento legal do parecer é invocado o Código de Ética Médica que assim prescrevia: "Artigo 1º - A medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa..." "Artigo 30 - O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e melhor de sua capacidade profissional". "Artigo 19 - O médico, salvo o caso de "iminente perigo de vida", não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento tácito ou explícito do paciente e, tratando-se de menor incapaz, de seu representante legal". Portanto, a orientação do CFM é no sentido de que em caso de risco de vida ou iminente perigo desta, o médico deve praticar a hemodifusão apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em evitá-la. Observe-se ainda que o fundamento normativo seria o Código de Ética Médica. 

O atual Código de Ética Médica é a Resolução CFM nº 1.931/2009 publicada no D.O.U de 24.09.2009, Seção I, p. 90, com retificação publicada em 13.10.2009, Seção I, p. 173 com entrada em vigor cento e oitenta dias após a data de sua publicação em substituição a Resolução CFM nº 1.246/88. Eis os artigos que entendo pertinentes ao caso: 

Capítulo I 
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS 

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. 

V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. 

VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. 

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. 

VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. 

XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente. 

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. 

Capítulo II 
DIREITOS DOS MÉDICOS 

É direito do médico: 

I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza. 

II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. 

Capítulo III 
RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL 

É vedado ao médico: 

Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade. 

Capítulo IV 
DIREITOS HUMANOS 

É vedado ao médico: 

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. 

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. 

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. 

Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la. 

Art. 27. Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza. 

Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade. 

Parágrafo único. Caso ocorram quaisquer atos lesivos à personalidade e à saúde física ou mental dos pacientes confiados ao médico, este estará obrigado a denunciar o fato à autoridade competente e ao Conselho Regional de Medicina. 

Capítulo V 
RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES 

É vedado ao médico: 

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. 

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. 

Observe-se que a Resolução citada (O atual Código de Ética Médica) parece impossibilitar qualquer tentativa de interpretação sistêmica na medida em que garante a absoluta autonomia do médico em caso de urgência e emergência, iminente risco de vida ou a materialização deste. Afirma ainda que o médico jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (Cap.I, VI). Os itens VII, VIII e XVI do capítulo I, garantem autonomia total ao médico desde que presentes urgência, emergência ou risco de vida. No inciso XXI afirma que o médico aceitará as escolhas de seus pacientes no processo de tomadas de decisões desde que estas estejam de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais e que as mesmas sejam adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. O artigo 20 veda ao médico que interesses religiosos interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção. A partir de então, descortina-se o capítulo relativo aos direitos humanos que surpreendentemente prescreve entre outras vedações ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Neste caso, o risco iminente seria a exceção (art.22). Prossegue ainda vedando ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto (art. 23). Proíbe também o médico de deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo (art.24). Ainda, é proibido deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la (art. 26). Veja-se a força deste dispositivo que impede inclusive o médico de forçar o paciente a se alimentar, devendo apenas cientificá-la dos riscos do jejum e em caso de risco iminente de morte está obrigado apenas a tratá-lo. É vedado ainda desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza (art. 27). Por fim, proíbe o médico de desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade (vontade do médico) (art. 28). 

Observe-se que aqui não se faz a ressalva a respeito do risco iminente. Por que não precisava ou porque não exige o risco iminente de vida? Este volta a aparecer apenas no artigo 31 ao tratar do relacionamento do médico com os familiares do paciente, justificando eventual desrespeito do médico à vontade da família. O que se observa de tudo isto é que o médico é livre para decidir desde que haja iminente risco de vida. Então significa que o capítulo relativo aos direitos humanos tem função apenas de discurso oficial para agradar aos defensores dos direitos humanos, ficando ao livre arbítrio do médico decidir se respeita em relação ao paciente o interesse, a integridade, a dignidade, a livre decisão a respeito de sua pessoa e seu bem estar, integridade mental com garantia de sua personalidade e consciência, independentemente de sua consciência (do médico)? Logo se percebe que o Código de Ética Médica é cardápio para todos os gostos. Tanto serve para justificar o médico que deve agir em caso de risco iminente como para a defesa dos que entendem que em alguns casos, desde que esteja em jogo a defesa da consciência e personalidade do paciente a hemotransfusão deva ser evitada. O Código está pronto a ser interpretado por qualquer hermeneuta que parta de um grau zero de sentido, utilizando-se de termos contraditórios contidos no referido Código, construindo então uma tese discricionária palatável a qualquer apetite. Entretanto, cuida-se apenas de um Código de Conduta voltado para a classe médica. É texto de cunho administrativo. Vincula o médico, entretanto, não o paciente. 

Fica de tudo isto a seguinte conclusão. 

O Código de Ética Médica não resolve e nem aponta solução para o caso concreto diante de suas contradições finalísticas. Corporativamente, neste caso concreto, qualquer defesa é possível diante do Conselho Federal de Medicina a partir do texto analisado, principalmente a que justifica a atuação do médico, seja ela qual for, abstraída então a dignidade deste estranho chamado paciente. Antes de voltarmos ao direito positivado há necessidade de se responderem algumas perguntas. A hemotransfusão é sinônimo sempre de manutenção da vida? Há riscos no tratamento hemoterápico? Há alternativas para o referido tratamento? A transfusão de sangue nem sempre garante a vida do paciente. É bem verdade que há uma eficácia comprovada de resultados positivos da transfusão sanguínea em caso de choque hipovolêmico. As chances de manutenção da vida aumentam muito, potencializando-se ao máximo a liberação do oxigênio, reduzindo-se ao mínimo seu consumo. Mas isto por si só não garante a manutenção da vida. A transfusão neste caso é meio terapêutico cujo objetivo é manter o paciente com todas as potencialidades químico-biológicas em funcionamento adequado para que a trincheira principal não seja destruída na luta pela vida. Mas há as contingências. Em medicina elas contam muito e são fundamentais. Quanto a isto a lei 10.205 de 21 de março de 2001 no parágrafo 1º de seu artigo 3º afirma que a hemoterapia é uma especialidade médica, estruturada e subsidiária de diversas ações médicas-sanitárias corretivas e preventivas de agravo ao bem-estar individual e coletivo, integrando, indissoluvelmente, o processo de assistência à saúde. Daí vê-se a importância da terapia de transfusão, bem como do aproveitamento do sangue, seus componentes e hemoderivados. (artigo 2º da mesma lei). Lamentavelmente a lei que regulamentou o § 4º do artigo 199 da Constituição Federal de 1988 não avançou na positivação da controvérsia, deixando ao intérprete autêntico a solução da lide. 

A segunda questão é se há riscos no tratamento hemoterápico. A resposta é positiva. Uma simples consulta a qualquer consultoria ou repositório de jurisprudência mostrará a pletora de ações judiciais voltadas contra o Estado por suposta contaminação através de transfusão de sangue. Embora muitos pedidos sejam julgados improcedentes, isto não significa dizer que não houve a contaminação, pois há comprovação de que o único meio cem por cento seguro de evitar qualquer contaminação em relação à transfusão é não fazê-la. A rigor, não são somente os Testemunhas de Jeová que rejeitam conscientemente a transfusão de sangue. Embora todos os esforços encetados inclusive pela edição da lei 10.205/2001 e pela sensível melhoria na prestação deste serviço essencial a todos, restou a desconfiança em face de tantos casos conhecidos no seio da sociedade. Na prática do dia-a-dia, somente em casos extremos o cidadão aceita pacificamente e sem ressalvas a transfusão. É cultural. É fruto da racionalidade de que o sangue é portador de todas as heranças vinculadas ao doador. Um mito de meias-verdades que não se aplica a meios e modos de vida senão a heranças biológicas. 

Sem embargo do risco de controle do sangue, há outros relacionados à hemotransfusão, tais como os apontados por Luiz Ricardo Ligiera, Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em artigo publicado, onde afirma a respeito dos riscos transfusionais: Tratados de medicina em geral indicam que as hemotransfusões envolvem riscos sérios, às vezes letais, para os pacientes submetidos a tal forma de tratamento médico. A pesquisa na moderna literatura médica expõe o erro de presumir que a transfusão de sangue seja sempre uma terapia que "salva a vida". Ela também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo. Em recente e conceituado trabalho científico, Hébert et al. comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva. Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou por hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológica, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas. Alguns exemplos de doenças infecciosas, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais, são: a AIDS (sigla, em inglês, para "síndrome da imunodeficiência adquirida", causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (sigla, em inglês, para "vírus da leucemia e linfoma de células T") e por bactérias ou protozoários. [21]. Mollison, Engelfriet e Contreras, na consagrada obra Blood Transfusion in Clinical Medicine, declaram que "a maioria das mortes causadas por transfusão de sangue são devidas à transmissão de vírus, bactérias ou protozoários." E acrescentam: "Testes apropriados para exames sistemáticos das unidades de sangue doado estão disponíveis para a maioria dos agentes infecciosos capazes de causar significativa morbidade nos receptores; porém, a maioria dos testes não detectam todos os doadores infectados." Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a hemoterapia, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão de tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema imunológico do paciente, provocando aumento das chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: "Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões." (grifo nosso). 

Quanto ao último questionamento a resposta é positiva com ressalvas. A tentativa de substituição do sangue alogênico em tais terapias tem sido uma preocupação nas últimas décadas, seja para diminuir os riscos já apontados, seja para oferecer tratamento alternativo aos que se recusam a fazer transfusões, especialmente os Testemunhas de Jeová. 

Citarei apenas algumas das alternativas com a ressalva de que em muitos casos ainda não há uma palavra final da medicina. A hemodiluição; os aparelhos de recuperação de glóbulos vermelhos, como o processador de células sanguíneas Haemonetics 30 (associado a algumas complicações); anestesia hipotensiva; A desmopressina; a eritropoetina; reposição intravenosa de ferro associada a solução de nutrição parenteral total; pesquisas de solução de hemoglobina humanas; O Fluosol DA 20% (FDA-20) (preparação de fluorocarbono), estes constantes de documento juntado à contestação, etc. (fls. 99/106). Pode-se incluir nesta lista a relação juntada por Wilson Ricardo Ligeira, entre elas, os medicamentos que estimulam o corpo do próprio paciente a produzir os diversos tipos de células sangüíneas (eritropoetina humana recombinante, fatores recombinantes de estimulação do crescimento de colônias de granulócitos e macrófagos, interleucina-11 etc.); agentes hemostáticos (ácidos aminocapróico e tranexâmico, aprotinina, agentes hemostáticos tópicos, adesivos de tecidos, vitamina K1 etc.); expansores do volume do plasma que não contêm sangue (colóides e cristalóides) e os chamados substitutos do sangue (perfluoroquímicos, hemoglobina recombinante e polimerizada etc.). Acrescente-se aos medicamentos os equipamentos e aparelhos que reduzem o sangramento ou que recuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia, tais como bisturis hemostáticos, dispositivos de recuperação intra-operatória de sangue autólogo (comumente chamados "cellsavers") e aparelhos de monitoração não invasiva de oxigênio que reduzem as perdas ocasionadas por freqüentes coletas para exames laboratoriais, entre outros. Estas terapias estão vinculadas evidentemente às suas contingências e a grande maioria delas não pode ser utilizada em momentos críticos de choque hipovolêmico, sendo a transfusão mais rápida e da garantida eficácia intercorrente. 

Sendo assim, em um momento crítico tendo o médico ciência de que o paciente adulto e capaz, que deixou sua vontade expressa em um documento que está em posse da família de não receber aquela terapia (hemotransfusão) deve ser respeitada? Voltemos então ao direito positivado. Neste caso concreto não cabe a aplicação defendida pela requerida da lei nº 9.434 de 04.02.1997 que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências e que prevê ainda em seu artigo 10º, autorização expressa do receptor para doação de órgãos em função do dispositivo contido no parágrafo único do artigo 1º da citada lei in verbis: Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo. 

Embora se possa apelar para um eventual progresso neste sentido, tal argumento de necessidade de autorização do receptor se infirma diante da exclusão expressa do sangue para os dispositivos desta lei e deveria ter sido regulamentada pela outra legislação já aqui citada (lei 10.205/2001). 

O Código Civil preceitua em seu artigo 13 o seguinte: Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Tal dispositivo não resolve a questão. A não disposição do próprio corpo aqui visa impedir que a dignidade humana seja aviltada por interesses comerciais, por cupidez, por transtornos ou qualquer outra forma que contrarie os bons costumes, adjetivando-se a moral do homem médio, seja lá o que isso signifique na ficção criada pelo legislador. 

A recusa ao recebimento da transfusão nenhuma relação tem com a disposição do próprio corpo. O artigo 15 do Código Civil, invocado pela requerente, também não se aplica. Este diz o seguinte: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Se é verdade que a transfusão é um risco em potencial, não deixa de ser verdadeiro que nem todas as transfusões são riscos manifestos de vida. 

Até uma penicilina pode causar risco de vida. Esta faculdade não pode tomar a exceção pela regra. Desta forma, o caso concreto não se resolve por estes dispositivos citados. Assim sendo, resta a Constituição Federal para a solução da lide. O inciso II do artigo 5º afirma que: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; O que fica demonstrado até aqui é que não há lei que force a paciente/requerida a se submeter a hemotransfusão. Nenhuma lei, regulamento ou mesmo o juramento de Hipócrates a obriga a este tipo de tratamento. A idéia geral é a de que a Constituição Federal de 1988 simplesmente prevê a inviolabilidade da vida prevista no caput do artigo 5º, sem que se considere sua interpretação de forma harmônica com o direito ínsito no interior da própria Carta Magna e até mesmo com os incisos que complementam o referido caput. Não se pode esquecer a lição já reiteradamente aqui lembrada de que não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A Constituição está eivada de outros dispositivos que integram a expressão do que se passou a chamar de dignidade da pessoa humana. Aliás, este é fundamento do Estado Republicano e Democrático de Direito expressamente previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. Tal princípio consta do grande conjunto de princípios de ordem política segundo a lição de INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, incluindo tal princípio na categoria de valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional. Tal fundamento da República leva ao objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (art. 3º, IV). Quanto a liberdade de crença, o artigo 5º (o mesmo que é utilizado em seu caput para justificar em alguns discursos a ação médica independente do que pensa o paciente ) afirma em seu inciso VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (grifo nosso). Aplicando-se ao caso concreto não vejo antinomia entre o caput da referido artigo que garante inviolabilidade à vida e este inciso. A crença professada pelos Testemunhas de Jeová, neste aspecto, que é o que nos interessa ( a hemotransfusão), em nenhum momento prega qualquer doutrina que afronte a vida, que faça apologia ao suicídio, que recomende a busca leviana de uma vida melhor no paraíso e que por isto é necessário se buscar o fim à vida, a não ser a partir da recomendação comum a todos os cristãos escrita pela pena do próprio apóstolo Paulo ao afirmar que melhor era estar com Cristo . Ora, nem por isto o conhecido apóstolo tinha fama de suicida e pelo contrário amava a missão que lhe fora concedida em vida, afirmando a história ter recorrido até o fim para não ter uma morte indigna. O que se quer dizer com isto é que a recusa tem origem em assentamento doutrinário, que certo ou errado, falso ou verdadeiro, deve ser respeitado diante da demonstração cabal de que a paciente quer viver a ponto de procurar um hospital a fim de buscar tratamento que lhe permita continuar vivendo. 

Em vista do prontuário da paciente não tenho dúvidas que a mesma procurou o hospital com o único intuito de buscar qualquer tratamento que lhe minimize a dor, excetuado o tratamento hemoterápico pela via da transfusão. É o que diz expressamente o documento assinado pela paciente com cópia às fls. 85. 

Não importam as fundamentações que subjazem à recusa, basta que haja a manifestação de vontade da paciente que está fundamentada em razões pessoais de cunho eminentemente religioso. É fato que a paciente deseja ser tratada por qualquer outra terapia menos a transfusão. Cientificada dos riscos da não transfusão, deveria receber a totalidade do tratamento adequado para minimizar-lhe a dor através de todo o conhecimento científico existente, ainda que isto importasse em custos adicionais ao governo, ao sistema de saúde ou à instituição particular. Novas terapias neste aspecto estão sendo desenvolvidas mundo afora, sujeitas a verificação e testes ou mesmo simples tentativa de rotinização nos hospitais, embora com custos adicionais. 

Remanesce a pergunta: Mesmo em casos extremos deveria ser obedecida a vontade do paciente? Sim, mesmo em casos extremos. Aqui se justifica com a dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana conforme exposto anteriormente se acha estreitamento vinculado à noção de pessoa e de personalidade, sendo que, a dignidade constitui a dimensão moral da personalidade que tem por fundamento a liberdade e autonomia da pessoa. A dignidade da pessoa humana inclui-se na afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo (Perez Luño, 2006). Não há nada mais precioso, para aquele que crê em algo, do que a certeza de sua fé. A certeza de que sua ética cotidiana influenciará de alguma forma sua passagem para outro plano de vida (nos termos de seu ideário). Há éticas positivas e outras negativas que destroem os seres humanos em geral, incluindo terceiros. Não é desta última que se quer falar, mas, daquela vivenciada por pessoas que acreditam firmemente que a subsunção a um tipo de procedimento médico, afastará o paciente definitivamente da promessa que acredita (de recompensas celestiais), em caso de descumprimento de tal preceito nesta vida. A partir daí, não é difícil entender que esta pessoa lutará pela vida de todas as formas, como de fato a requerida luta, porém, dará sua vida para não ofender sua consciência e sua fé. 

Grande parte do arcabouço jurídico infraconstitucional está voltado para o respeito à consciência e autonomia da pessoa, partindo-se do pressuposto de que a mesma não está optando por morrer, mas pela expectativa de que seja aplicada outra técnica que lhe salve a vida, deixando claro que não autoriza a transfusão. Muitos teriam poupado a sua vida se na noite de São Bartolomeu houvessem simplesmente violado suas consciências e isto por si só não significa que não quisessem viver A partir desta visão da dignidade humana como vetor estruturante da CRFB, passa então tão princípio a abarcar não somente a garantia da vida biológica, mas, a higidez moral e espiritual, sendo necessário que se imagine algumas situações na prática. A primeira, partindo-se do fato de ter sido um sucesso absoluto a transfusão no tratamento oncológico. A segunda, de insucesso da transfusão com interstício razoável entre o tratamento e eventual óbito. No primeiro caso, tomando-se em conta a fé da paciente, a cura poderia equivaler à destruição de todos os seus anseios, de todos os seus sonhos e projetos de vida. Passaria, a partir de convicções peculiares de sua comunidade religiosa a se sentir uma impura, sem perspectivas de alcançar a meta espiritual para a qual se acha vocacionada. 

Sob seu próprio conceito, se tornaria uma pessoa diferente no seio de sua comunidade, de sua família e de seus amigos mais queridos. Teria sua vida virada do avesso, perdendo o rumo e o tino e quem sabe sua própria identidade. Sua vida espiritual se resumiria a uma grande dúvida a respeito de seu próprio destino. Seria rejeitada por sua comunidade e em seguida seria vítima de conflitos familiares, sejam eles idiossincráticos ou não. Tudo isto é possível. Uma possibilidade terrível para sua pessoa e personalidade. No segundo caso, imagine-se um paciente terminal cujo único consolo é a fé que guarda dentro de si e cujo único anseio é de alguma forma procurar fazer a vontade da razão de sua fé, de seu Deus, de cumprir sua promessas finais no momento mais crítico pelo qual possa atravessar um ser humano cuja única certeza que deseja ter neste momento é a aceitação de seu Deus ao seu espírito (segundo os ditames da sua consciência). Como acalmar o espírito no momento crepuscular da vida senão através da fé na racionalidade metafísica que se aprendeu a desenvolver no curso da vida? Isto sem se falar na dor moral, que para o direito é a dor que não se quantifica, mas se qualifica. Sem falar ainda na dor da família em ver talvez a última vontade de seu ente querido realizada, ou seja, ser tratado de forma alternativa. 

O quadro acima descrito guarda alguma relação com o princípio da dignidade da pessoa humana? Há alguns que afirmam se tratar de choque de princípios (inviolabilidade à vida x dignidade da pessoa humana). Não vejo desta forma. Não há aqui, neste caso concreto, senão uma amplitude da inviolabilidade do direito à vida digna. Não se pode entender que a Constituição Federal admita a vida de outra forma que não seja na expressão de sua dignidade e isto significa levar em conta a riqueza cultural do ser humano que não quer morrer, porém, que viver sob o pálio de uma autonomia de condutas éticas reconhecidas pelo seu meio (ethos) e aprovadas por seu sistema jurídico. Daí que não se pode esquecer que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República como dito antes (art. 1º, III CRFB) e que não se pode considerar o caput do artigo 5º isoladamente, na medida em que seus incisos indicam em que termos os direitos ali contidos serão exercidos. Significa dizer, então, que a Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida (caput) não sendo a pessoa obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (II), sendo inviolável sua liberdade de consciência e de crença (VI). Imaginar o direito à vida a partir de um grau zero de sentido é o mesmo que dizer que é possível torturar, mas não se pode matar a partir da tortura porque a vida é inviolável. Ora isto é absurdo, pois a inviolabilidade do direito à vida deve ser conjugado com o inciso III do mesmo artigo 5º, que proíbe terminantemente a tortura. Reitero que sendo a dignidade da pessoa humana fundamento da República, a inviolabilidade do direito à vida é a inviolabilidade do direito à vida digna. Por isto não cabe aqui qualquer aplicação do princípio da proporcionalidade. Não vejo dois princípios em colisão. Não vejo como averiguar necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito diante da ausência de colisão de princípios. O que ocorre na realidade é a negação a um direito fundamental de liberdade de consciência e crença, ou seja, a negação a um princípio e não colisão entre mais de um. Aliás, este é um direito fundamental de qualquer cidadão e não apenas dos Testemunhas de Jeová. Não havendo crença, deve o Estado respeitar a consciência do ser humano nos termos propostos e constantes na Constituição. Repito que não se cuida de fazer apologia ao suicídio, isto é outro fato e outra circunstância. O direito ao suicídio não é contemplado em nossa Constituição e não é esta a discussão. A paciente está em busca de tratamento. Quer viver, porém, viver de acordo com sua fé, buscando tratamento adequado a sua fé, necessário ao seu bem estar, proporcionalmente maior que todo o direito arvorado pelos médicos em ficar tranqüilos com sua consciência. 

Em que pese a coincidência das palavras não se trata de utilização de postulado normativo aplicativo. É possível então que o sofrimento moral da paciente seja minorado? A não ser que haja regras específicas nos seus dogmas de fé, a outra alternativa seria renunciar a sua crença. Isto para qualquer um que discorde dos postulados da fé da paciente não significa nada. É apenas mais um cristão cooptado à ética da maioria. 

Mas isto pode significar ao fim e ao cabo a desnaturação da identidade da paciente. Pode ser tudo para ela e neste aspecto, ninguém, nem o Estado, tem o direito de interferir a esse respeito. Para a medicina basta que não haja morte cerebral e um coração batendo para trombetear que a missão está cumprida? A racionalidade da ciência não pode mais preponderar abstraindo-se o caráter da racionalidade social que faz parte da construção do ser humano enquanto personagem de múltiplos papéis. Ou seja, a medicina não tem o direito de, podendo buscar novas alternativas para garantir o direito fundamental à liberdade de consciência e crença, utilizar-se de números frios para decretar que a cura prescinde da saúde moral, da higidez da dignidade de cada ser humano e que a vida se resume a neurônios funcionando e coração pulsando. 

Embora em contexto um pouco diferenciado não custa lembrar as palavras de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo conhecimento do valor dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais e coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente, de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade. Neste caso concreto, não importa em que base está sustentada a racionalidade da paciente, se suas convicções são verdadeiras ou falsas (o direito não se ocupa disto) ou se para os médicos é apenas uma besteira. Para ela é tudo e este direito é protegido por regras constitucionais que estão sustentadas em princípios inarredáveis de nossa cotidianidade. É preciso escapar de lugares comuns que nada exprimem enquanto exteriorização de princípios. Frases como Não existem deuses sem vida; Sem vida não há Deus; Deus é a favor da vida; morto não tem religião; o princípio da vida (sic) é maior que tudo (?) sem uma justificação jurídica, se prestam apenas para a construção de frases de efeito como discurso de correção e discricionário, impondo-se por vezes a visão de mundo do interlocutor. Há outro efeito secundário a par de tudo isso. Ninguém é obrigado a dirigir-se a um hospital para buscar tratamento de uma moléstia qualquer. O ser humano é livre para escolher morrer em casa ou minorar sua dor em um nosocômio. Ninguém pode interferir nisto, por mais doloroso que pareça. 

Os Testemunhas de Jeová não podem se tornar um grupo aterrorizado pela ameaça constante da violação de sua fé. De outra forma estaremos diante de um fato inusitado. Muitos dos que poderiam minorar a sua dor buscando um certo conforto, evitarão os hospitais, fazendo com que a proteção à vida humana se volte contra estes seres que desejam ser tratados com o respeito a sua fé, além do que, é conhecida a necessidade de uma certa dose de otimismo e moral alto em qualquer terapia, que funcionam como coadjuvantes essenciais na recuperação do paciente. Por isto a lei 8.080/90 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências (SUS) exige a observância entre outros dos seguintes princípios: Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; A preservação da autonomia das pessoas, portanto, não se esgota em sua integridade física, mas alcança sua integridade moral. Apenas a título de argumentação é necessário se dizer que a norma surge a partir do caso concreto. A paciente é capaz e adulta. E se não fosse? Então estaríamos diante de outro caso sendo inaplicáveis tais argumentos no caso de tratar-se de criança ou mesmo adolescente, pois nem a garantia do pátrio poder pelo Estatuto da Criança e do Adolescente seria capaz de afastar o princípio da proteção insuficiente (untermassverbot) com aplicação do princípio da proporcionalidade diante do fato de que ninguém pode decidir a respeito da prescindibilidade de terapia em caso de risco de vida em relação a terceiros menores, ainda que o fundamento seja lei em vigor, o que não é a discussão aqui. 

Assim sendo, passo a concluir. 

A hemotransfusão nem sempre significa manutenção da vida e nem é sinônimo exato desta. Há alternativas médicas em estudo que possibilitam a troca de terapia. Em casos de choque, sendo o paciente adulto e capaz, desde que o médico tenha ciência da vontade do paciente, esta deve ser respeitada por ser protegida como um direito fundamental indisponível e inerente a sua personalidade. Não vejo regra infraconstitucional que obrigue o médico a violar a vontade legítima do paciente em optar por outro tratamento que se adeque a sua consciência e crença. A regra constitucional que torna coerente e sustenta a integridade do direito a ser respeitado neste caso é o fundamento republicano fundado no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II), que enquanto princípio deve ser respeitado e cuja reconstrução histórico-institucional aponta para um antropocentrismo alargado, vendo o homem como componente de uma realidade a qual está inserido como ator e não como simples objeto, deslocado da visão puramente biológica, cujo direito fundamental à inviolabilidade da vida digna está garantido pelo caput do artigo 5º, ganhando amplitude no caso concreto quando analisado em conjunto com o inciso VI do mesmo artigo (inviolabilidade do direito à consciência e crença) qualificando seu direito à vida, conferindo-lhe a dignidade necessária para caminhar e conviver em sua comunidade ao exigir do Estado e do particular que se abstenham de violar tais direitos, recusando-se a ser submetido compulsoriamente à hemotransfusão. 

Ante o exposto julgo improcedente o pedido. Tendo em vista que a liminar ainda não foi cumprida fica desde já revogada. 

Custas na forma da lei. Condeno o vencido ao pagamento de 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa. Transitado em julgado, arquive-se. 

P.R.I.C. Belém, 17 de novembro de 2009. 

MARCO ANTONIO LOBO CASTELO BRANCO 
Juiz de Direito da 2ª vara da Fazenda de Belém


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