Magistrado julga improcedente pedido
para autorização de transfusão de sangue em testemunha de Jeová.
Nº Processo: 2009.1.049843-2
AUTOR: HOSPITAL OPHIR LOYOLA
ADVOGADO: PAULO ROMERO FAGUNDES JUNIOR
RÉU: EDVALDINA TAVARES ASEVEDO
Data: 20/11/2009
SENTENÇA TIPO A COM MÉRITO
Vistos etc.
Cuida-se de Ação Cautelar inominada com pedido de liminar interposta por
HOSPITAL OPHIR LOYOLA em face de EDVALDINA TAVARES ASEVEDO.
Aduz a inicial, que a requerida é paciente daquele hospital e está acometida
de osteorssacoma metastático pulmonar, uma doença grave, correndo sérios
riscos de vida e submetida a tratamento quimioterápico, neutropenia e
plaquetopenia. Que a paciente se encontrava com um quadro de hemorragia
grave, sendo empregados medicamentos para evitar a necessidade de transfusão
de sangue, uma vez que a mesma é seguidora da religião Testemunha de Jeová.
Que a requerida pode a qualquer momento sofrer distúrbio hemorrágico
incontrolável e que desta forma será imperiosa uma transfusão sanguínea.
Requer por fim, a liminar e a procedência da ação.
Documentos acostados às fls. 8/49.
Contestação às fls. 50/71, juntando documentos até fls. 224, em que o
contestante alega: a) preliminarmente, o descabimento da ação cautelar, tendo
em vista que é satisfativa e consequentemente há ausência de interesse de
agir. b) Inépcia da inicial por falta de correlação entre narração dos fatos
e conclusão. c) No mérito, requer a improcedência do pedido.
Réplica às fls. 226/231.
O Ministério Público ofertou parecer às fls. 233.
Vieram-me os autos conclusos para prolatação de sentença.
É o relatório.
Passo a decidir.
Indefiro a preliminar de descabimento da ação cautelar no caso concreto.
A pletora de situações e circunstâncias da vida fazem por vezes que o
Judiciário reconheça a autonomia da pretensão cautelar.
Embora não reconhecida uma verdadeira autonomia da referida ação em nossa
legislação processual, é induvidoso que há fatos que exigem uma decisão
cautelar autônoma por sua natureza e eficácia no tempo.
Tome-se como exemplo as cautelares que visam salvaguardar a vida do
jurisdicionado. Encetando um resultado positivo a que se prestaria uma ação
principal? Apenas para atender formalmente a um dispositivo legal com mais
custos e demanda de tempo? Em caso de improvimento final do direito pleiteado
como ficaria então a parte que sofreu o ônus da liminar? Tal prejuízo se
resolve em perdas e danos, garantindo-se ao fim e ao cabo a vida do autor,
evidentemente observado o caso concreto e as disposições legais pertinentes
ao fato.
Esta é a lição de Ovídio Batista ao afirmar a existência de cautelares
autônomas: Nosso Código de Processo Civil não reconhece, como acabamos de
ver, uma autêntica autonomia à ação cautelar, a ponto de poder ela prescindir
de um processo satisfativo, dito principal, de modo que a tutela obtida
através de demanda cautelar pudesse bastar-se a si mesma a não carecesse a
tutela outorgada a ser confirmada pela sentença do processo principal.
Todavia, queira ou não queira o legislador, esta autonomia existe em inúmeros
casos, sem que nossa lei ou a própria doutrina sejam capazes de contrariar a
realidade e a própria natureza das coisas.
A seguir, o ilustre Professor passa a listar alguns casos em concreto como as
ações de asseguração ad perpetuam de provas, a conhecida produção antecipada
de provas, termo refutado pelo referido processualista. Lista ainda as
cauções entre elas a caução de dano iminente (cautio damni infecti) contidas
nos artigos 1.280 e 1.281 do Código Civil atual. Por fim, afirma: O elenco de
possíveis ações cautelares inominadas é inegostável, enquanto se definam como
tutela assegurativa de direitos e pretensões de direito material e até mesmo
de pretensões processuais.
Além dessas que foram indicadas como cautelares autônomas, muitas outras
poderiam ser arroladas, a maioria delas como medidas preparatórias ou
incidentes, algumas com tutela cautelar autônoma. (idem p. 128).
Assim sendo, não procede a preliminar de não cabimento da ação cautelar por
ser a mesma satisfativa.
Quanto ao argumento de perda de objeto tenho que também esta não se operou.
O termo de alta hospitalar constante às fls. 84 afirma que a condição da
paciente é melhorado entre as alternativas pré-lançadas no termo (as outras
são: curado, inalterado e óbito) e não melhorando, conforme informou a
contestação, sendo diagnosticado na alta hospitalar, osteossarcoma com
metástase pulmonar.
Ao relatar o tratamento fornecido o termo de alta afirma ter sido ministrada
medicação p/ dor. Que a paciente tem anemia, porém devido à religião não fez
hemoderivados. (fls. 84).
Portanto, a ação não perdeu objeto, pois, embora a paciente tenha tido alta
sem que a transfusão sanguínea tenha sido feita, não significa que a mesma
esteja curada, e, portanto, a qualquer momento pode ser obrigada a retornar
ao hospital para procedimentos de urgência, exigindo-se uma decisão que ainda
está vinculada aos fatos deste processo por nexo direto de causalidade.
Portanto, ainda estão presentes a fumaça do direito e o perigo na demora da
decisão judicial. Assim sendo, esta ação não perdeu objeto. Quanto a segunda
preliminar, também indefiro.
Não vislumbro confusão na petição inicial. Esta afirma que a paciente está
com um quadro de hemorragia grave, sendo empregados medicamentos para evitar
a necessidade de transfusão de sangue e que pode sofrer a qualquer momento
distúrbios hemorrágicos incontroláveis, sendo imperiosa uma transfusão
sanguínea, não havendo qualquer outro meio de salvar-lhe a vida.
Não vejo necessidade de explicitar o que já está claro. Não se trata de
edição do texto, mas, de compreensão do objeto do pedido.
Havia um sangramento com tentativa de utilização de medicamentos para
estancá-la, porém, com risco de tornar-se incontrolável, haveria a
necessidade de transfusão de sangue.
Vencidas as preliminares, passo ao mérito.
O cerne da questão gira em torno do fato de que a requerida se recusa a
aceitar transfusão de sangue em caso de orientação da equipe médica neste
sentido, mesmo que isto signifique risco de vida para a paciente.
A requerida tem 19 anos, é adulta e capaz. Tomou a decisão livre de não se
submeter aos tratamentos indicados em caso de anemia aguda, exceto,
recuperação intra-operatória de células, hemodiluição, máquina
coração-pulmão, podendo aceitar ou não, alguns procedimentos médicos que
envolvam o uso de seu sangue, sendo que os pormenores devem ser considerados
com a requerida, se a mesma estiver consciente, e com seu procurador caso
esteja inconsciente, proibindo expressamente que o mesmo desconsidere sua vontade
(fl. 86).
Eis o cerne da questão: É justificável perante o ordenamento jurídico a
recusa de paciente a determinado tratamento/procedimento terapêutico neste
caso a transfusão de sangue sob o argumento do direito à liberdade de
escolha, dignidade da pessoa humana ou ainda convicções morais ou religiosas
ou ainda ambas concomitantemente? Embora tenha sido muito habilidosa a
contestação em não polarizar a discussão jurídica a partir da dicotomia
direito à liberdade de convicção religiosa/direito à vida, buscando
demonstrar que o arcabouço jurídico pátrio é suficiente para dirimir a
questão a partir de outros princípios, não há dúvidas que a questão de fundo
tem por argumento a convicção religiosa da requerida. Isto fica
definitivamente demonstrado quando a contestação afirma que: Como Testemunha
de Jeová, a requerida procura harmonizar ao máximo a sua vida com os
princípios contidos na bíblia, o que inclui observar o mandamento escrito
pelo médico Lucas de abster-se de sangue (Atos 15: 28 e 29 citado literalmente
na nota de rodapé), o qual é reafirmado em todo o conjunto dos escritos
bíblicos (grifo nosso) (fls. 53/54).
O texto bíblico citado diz o seguinte: Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a
nós não vos impor maior encargo além dessas coisas essenciais: Que vos
abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de
animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem
se vos guardardes. Saúde. (At 15: 28 e 29).
Pouco importa o que outro intérprete por melhor e mais hermenêuticos que
sejam seus argumentos pense a respeito do ordenamento e da extensão contido
no texto bíblico. Tal discussão de cunho moral-religioso seria infrutífero
para decidir a questão judicial na medida em que a Constituição Federal garante
em seu artigo 5º a inviolabilidade do direito à liberdade, inclusive de
manifestação do pensamento (inc. IV) e que ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo
se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se
a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (inc. VIII).
Em resumo, por convicção religiosa o crente poderá não somente crer, mas,
divulgar sua crença a partir de interpretação do texto que entender ser sua
regra de fé e prática, desde que tal conduta não viole outros dispositivos
contidos na Constituição Federal, sendo este o limite de sua liberdade. Sendo
assim, a interpretação do texto bíblico não importa ao deslinde da questão.
Então de que forma se dará resposta à lide? Embora a questão de fundo da
recusa seja religiosa, como dito antes, entendo que a resposta deve ser dada
pelo direito a partir dos princípios inseridos na Carta Magna, entretanto,
não se deve caminhar pela técnica da ponderação, seja de princípios, o que
por si só já seria um erro metodológico, nem da técnica de ponderação de
valores ínsitos a estes princípios, que perderiam por isto sua função
normativa, embora tornasse mais fácil o julgamento da ação pelos diversos
caminhos que a discricionariedade proporcionaria ao julgador, entretanto,
correndo-se sérios riscos de optar-se por uma solução fora do âmbito
democrático, fora do alcance da autonomia do direito fazendo exsurgir à
vontade e ânimo de foro íntimo do julgador.
A lição de Eros Grau a respeito é contundente: Daí que os juízos de
ponderação entre princípios de direito extirpam seu caráter de norma
jurídica. Pretendo, com isto, que princípios de direito não podem, enquanto
princípios, ser ponderados entre si. Apenas valores podem ser submetidos a
essa operação. Dizendo-o de outro modo, a ponderação entre eles esteriliza o
caráter jurídico-normativo que os definia como norma jurídica. Curiosamente,
os princípios são normas, mas, quando em conflito uns com os outros, deixam
de sê-lo, funcionando então como valores.
A doutrina tropeça em si mesma ao admitir que os princípios, embora sejam
normas jurídicas, não são normas jurídicas... Quanto à normatividade dos
princípios afirma Lenio Streck: ...em Dworkin a normatividade assumida pelos
princípios possibilita um fechamento interpretativo próprio da blindagem
hermenêutica contra discricionarismos judiciais. Essa normatividade não é
oriunda de uma operação semântica ficcional como se dá com a teoria dos
princípios de Alexy. Ao contrário, ela retira seu conteúdo normativo de uma
convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade
política da comunidade... Esse seja talvez o aspecto mais importante a
diferenciar o pós-positivismo do positivismo, problema central no debate
Dworkin-Hart. Sob a ótica positivista um princípio não é norma porque ele
trata de uma espécie de adereço do direito. Daí que para o ilustre Professor
os princípios são deontológicos, criticando o que passa a chamar de
panprincipiologismo. Portanto será de suma importância a normatização do
fato. A compreensão da singularidade do fato a partir da interpretação que
justifique a decisão judicial.
Dito isto, não estamos diante da simples questão de ponderar se o direito à
vida deve prevalecer sobre o direito à livre convicção religiosa. Não vejo
sequer antinomia neste caso, senão aparente. Diga-se também que não se cuida
de análise de um fato relacionado a relativismo cultural. Em primeiro lugar
porque se cuida de uma cultura vivenciada em uma comunidade específica no
interior de um sistema multicultural como o brasileiro, em segundo lugar
porque não pregam uma rejeição sistemática à medicina senão de um
procedimento específico (a transfusão sanguínea) fundada em interpretação
bíblica, em terceiro lugar porque buscam vínculos normatizantes entre
direitos positivados e sua interpretação, propondo fundamentar uma conduta
baseada em dogma de fé a partir do direito em vigor em cada país onde atua,
não sendo, portanto, simples postulado de primado do coletivismo (Flávia
Piovesan, 2009) nos termos propostos pela percepção de Jack Donnelly (apud
Flávia Piovesan, 2009).
Por fim, não se pode confundir o relativismo cultural com o pluralismo
cultural que nas palavras de Perez Luño assim se diferenciam: El pluralismo
cultural, o sea, el reconocimiento de uma realidad plural de tradiciones e
instituciones políticas y culturales, no debe confundirse com el relativismo
cultural, es decir, com el mito de que todas las formas culturales poseen
idêntico valor. Constituye uma evidencia histórica insoslayable que no todas
las culturas han contribuído em la mesma medida a la formación, desarollo y
defensa de los valores de la humanidad. Fica claro, enfim, que a convicção
religiosa da requerente não faz apologia a qualquer tipo de doença, mas
rejeita uma única terapia oferecida pela medicina, o que por si só faz com
que não se possa falar em violação ao universalismo dos direitos humanos,
pois a requerente busca voluntariamente ser inserida neste contexto a partir
do respeito ao direito fundamental que postula (de ter sua convicção
religiosa respeitada) sem ferir o mínimo ético exigido pela universalidade
dos direitos humanos. Enfim, o fato. Toda esta propedêutica decisória tem o
sentido de demonstrar que o fato será cotejado não somente por princípios,
mas a partir de todo o arcabouço positivo do direito e sua fundamentação
principiológica, não se apegando a uma simples ponderação de princípios ou
valores dicotomicamente representados por direito a vida vs. convicção religiosa.
Cuida-se, portanto, da tensão criada entre os médicos que indicam a
transfusão como imprescindível à manutenção da vida da paciente e a
resistência desta, requerendo a prática de tratamentos alternativos que
dispensem a utilização de sangue.
Conforme documento acostado à contestação (fl. 92) as testemunhas de Jeová
fazem parte de uma seita cristã que foi fundada no final da década de 1870
por Charles Russel em Pittsburgh, Pensilvânia, EUA. O que começou como um
pequeno grupo de estudo da Bíblia, tornou-se uma seita religiosa que
atualmente inclui mais de 2,6 milhões membros no mundo inteiro. A recusa das
testemunhas de Jeová em receber transfusões de sangue remonta a uma decisão
da igreja de 1945.
No caso trazido a juízo a insistência dos médicos em que haja uma
determinação judicial para a transfusão visa resguardá-los de eventuais ações
futuras pelo desrespeito à vontade do paciente.
Fundamentam seu inconformismo diante de normas, regulamentos, leis,
Constituição Federal e até no juramento de Hipócrates para afirmar que não
podem deixar de agir em casos extremos onde não haja outra alternativa.
Sobre o direito à vida forte a Constituição Federal de 1988 no caput do
artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso). Quanto à saúde a CFRB
assim se expressa em seu artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifo nosso).
Dito isto, vejamos o que significa tais expressões fazendo-se o cotejo com
outros instrumentos normativos à luz de sua própria constitucionalidade,
partindo-se dos fundamentos de pretensão e resistência contidos nos autos.
Como afirma o Prof. Eros Grau em seu discurso, não se interpreta o direito em
tiras. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete,
sempre, em qualquer circunstância o caminhar pelo percurso que se projeta a
partir dele do texto até a Constituição. Os médicos afirmam que prestaram
juramento de defender e lutar pela vida até as últimas conseqüências. O
Juramento de Hipócrates data do século V a.C., e, embora tenha afastado a
religião e a magia do nexo causal entre doença e cura o juramento é feito em
nome de Apolo Médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os
deuses e deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com
conhecimentos do médico e a critério deste, o juramento. O juramento é longo
e prevê detalhes da atuação médica no campo deontológico até o detalhe de não
permitir que se use a medicina para manter o médico relação sexual com seus
pacientes, sejam eles livres ou escravos. A atualidade de tal juramento chega
a impressionar, talvez por isto tenha tanta importância ao longo dos tempos.
A Revista Paraense de Medicina traz interessante estudo a respeito do
referido Juramento.
Segundo a revista, o juramento hipocrático, é considerado um patrimônio da
humanidade por seu elevado sentido moral e durante séculos tem sido repetido
como um compromisso solene dos médicos ao ingressarem na profissão. Informa
ainda que com uma ou outra variação é este o texto utilizado pela maioria das
universidades brasileiras: Prometo que ao exercer a arte de curar,
mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da
ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha
língua calará os segredos que me forem revelados, os quais terei como
preceito de honra. Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes
ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu,
para sempre, a minha vida e a minha arte, com boa reputação entre os homens.
Se o infringir ou dele afastar-me, suceda-me o contrário." O texto
prossegue firmando que a Declaração de Genebra, a mais antiga de todas, tem
sido utilizada em vários países na recepção aos novos médicos cuja versão em
português tem a seguinte redação: "Eu, solenemente, juro consagrar minha
vida a serviço da Humanidade. Darei como reconhecimento a meus mestres, meu
respeito e minha gratidão. Praticarei a minha profissão com consciência e
dignidade. A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.
Respeitarei os segredos a mim confiados. Manterei, a todo custo, no máximo
possível, a honra e a tradição da profissão médica. Meus colegas serão meus
irmãos. Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais,
partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei
o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça,
não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da
natureza. Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria
honra."
Em 1994, a Assembléia Geral da Associação Médica Mundial modificou ligeiramente
o texto. Sua versão em português ficou com a seguinte redação: No momento de
me tornar um profissional médico: Prometo solenemente dedicar a minha vida a
serviço da Humanidade. Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimento
que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A
saúde do meu paciente será minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do
paciente, respeitarei os segredos que a mim foram confiados. Manterei, por
todos os meios ao meu alcance, a honra da profissão médica. Os meus colegas
serão meus irmãos. Não deixarei de exercer meu dever de tratar o paciente em
função de idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo,
nacionalidade, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições
sociais ou econômicas. Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais
farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. Faço
essas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra."
Ninguém duvida do caráter deontológico de tal juramento. Tem natureza ética o
referido juramento. Sendo assim, a quem se jura? Sendo o Estado laico e a
maioria dos Estados o são, se jura para quem e em nome de quem? Não há
dúvidas que na modernidade o referido juramento se reporta à consciência do
profissional como uma bússola a guiar-lhe em meio às intempéries da
profissão. É a si próprio e à sociedade que faz tal juramento, estando
vinculado ao mesmo, pela lei universal da consciência, no melhor estilo
Kantiano. Sendo assim, tal juramento adquire uma força moral que avança na
direção de ser cumprido à frente de óbices que impedem o livre exercício da
medicina. Mas o que é mesmo que diz tal juramento? Qual seu conteúdo? O
médico ao jurar que não deixará de exercer o seu dever em função de crença
religiosa pode ter diversos significados e aplicações, entretanto, a
modernidade manteve subjacente a suas práticas diferenças e discriminações de
toda ordem, inclusive religiosa, e me parece claro que tal juramento está
relacionado ao fato do médico dever atendimento a qualquer ser humano, ainda
que este (o paciente) seja de uma religião que cause qualquer tipo de
desconforto no profissional da medicina. Apenas e tão somente para deixar
mais claro: Um judeu deixar de atender um muçulmano ou vice-versa; Um
católico deixar de clinicar um protestante ou vice-versa; um Hindu deixar de
medicar um Budista ou vice-versa; Um xintoísta deixar de atender um ateu ou
vice-versa; um gnóstico deixar de atender um agnóstico etc. Enfim, o que me
parece claro é que este juramento tem que ser analisado a partir de seu
sentido ético (é para isto que existe) e não se pode crer que no juramento de
Hipócrates a defesa da vida tenha apenas um caráter biológico, senão que deve
também respeitar a dignidade desta vida como se verá adiante. E porque digo
isto? Porque o direito não se interpreta em tiras, em pedaços. Toda norma,
ainda que moral ou ética, deve ter um fundamento lógico explicável, por mais
absurdo que seja, sob pena de tornar-se dogma de fé, o que não é o caso do
juramento de Hipócrates. Por isto, o médico promete o respeito absoluto pela
vida humana e jamais fazer uso dos seus conhecimentos médicos contra as leis
da Humanidade.
O direito à vida deve ser compreendido como direito à vida digna e este
direito é uma lei fundamental positivada em nosso ordenamento. Uma das mais
importante leis da humanidade é a autodeterminação do ser humano.
O professor Perez Luño ao falar sobre a dignidade da pessoa humana afirma que: El concepto de dignidad humana, por
tanto, se halla estrechamente vinculado, en el pensamiento de KANT, a las
nociones de persona y de personalidad. La dignidade constituye, en la teoria
kantiana, la dimensión moral de la personalidad, que tiene por fundamento la
propria libertad y autonomia de la persona. La dignidad humana entraña no
sólo la garantia negativa de que la persona no va a ser objeto de ofensas o
humillaciones, sino que suporte también la afirmación positiva del pleno
desarrollo de la personalidad de cada individuo.
Portanto o conceito moderno de lei da humanidade, seja no sentido
Kantiano seja positivado, não visa simplesmente proteger a vida, mas proteger
a vida digna. Logo, não há argumento em face de tal juramento que impeça o
médico de respeitar a vontade do paciente em não receber a transfusão de
sangue. A resolução 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina ao analisar caso
análogo decidiu: 2 - O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a
transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais
condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do
paciente ou de seus responsáveis em permiti-la. O médico deverá sempre
orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código. No
fundamento legal do parecer é invocado o Código de Ética Médica que assim
prescrevia: "Artigo 1º - A medicina é uma profissão que tem por fim
cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa..."
"Artigo 30 - O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em benefício
do qual deverá agir com o máximo de zelo e melhor de sua capacidade
profissional". "Artigo 19 - O médico, salvo o caso de
"iminente perigo de vida", não praticará intervenção cirúrgica sem
o prévio consentimento tácito ou explícito do paciente e, tratando-se de
menor incapaz, de seu representante legal". Portanto, a orientação do
CFM é no sentido de que em caso de risco de vida ou iminente perigo desta, o
médico deve praticar a hemodifusão apesar da oposição do paciente ou de seus
responsáveis em evitá-la. Observe-se ainda que o fundamento normativo seria o
Código de Ética Médica.
O atual Código de Ética Médica é a
Resolução CFM nº 1.931/2009 publicada no D.O.U de 24.09.2009, Seção I, p. 90,
com retificação publicada em 13.10.2009, Seção I, p. 173 com entrada em vigor
cento e oitenta dias após a data de sua publicação em substituição a
Resolução CFM nº 1.246/88. Eis os artigos que entendo pertinentes ao caso:
Capítulo I
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da
coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o
melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu
benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico
ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar
tentativa contra sua dignidade e integridade.
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a
prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje
excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou
emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,
renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou
imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de
instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios
cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do
diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do
paciente.
XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus
ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas
de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos
por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente
reconhecidas.
Capítulo II
DIREITOS DOS MÉDICOS
É direito do médico:
I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia,
sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião
política ou de qualquer outra natureza.
II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas
cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
Capítulo III
RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
É vedado ao médico:
Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de
quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do
financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha
dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e
cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da
sociedade.
Capítulo IV
DIREITOS HUMANOS
É vedado ao médico:
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso
de risco iminente de morte.
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua
dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir
livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade
para limitá-lo.
Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz
física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente,
devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na
hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.
Art. 27. Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou
utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em
investigação policial ou de qualquer outra natureza.
Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer
instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade.
Parágrafo único. Caso ocorram quaisquer atos lesivos à personalidade e à
saúde física ou mental dos pacientes confiados ao médico, este estará
obrigado a denunciar o fato à autoridade competente e ao Conselho Regional de
Medicina.
Capítulo V
RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES
É vedado ao médico:
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de
decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas,
salvo em caso de iminente risco de morte.
Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e
tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do
paciente.
Observe-se que a Resolução citada (O atual Código de Ética Médica) parece impossibilitar
qualquer tentativa de interpretação sistêmica na medida em que garante a
absoluta autonomia do médico em caso de urgência e emergência, iminente risco
de vida ou a materialização deste. Afirma ainda que o médico jamais utilizará
seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, ou para permitir e
acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (Cap.I, VI). Os itens
VII, VIII e XVI do capítulo I, garantem autonomia total ao médico desde que
presentes urgência, emergência ou risco de vida. No inciso XXI afirma que o
médico aceitará as escolhas de seus pacientes no processo de tomadas de
decisões desde que estas estejam de acordo com seus ditames de consciência e
as previsões legais e que as mesmas sejam adequadas ao caso e cientificamente
reconhecidas. O artigo 20 veda ao médico que interesses religiosos interfiram
na escolha dos melhores meios de prevenção. A partir de então, descortina-se
o capítulo relativo aos direitos humanos que surpreendentemente prescreve
entre outras vedações ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou
de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Neste caso, o risco
iminente seria a exceção (art.22). Prossegue ainda vedando ao médico tratar o
ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto (art. 23). Proíbe
também o médico de deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de
decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo (art.24). Ainda, é proibido deixar de respeitar a
vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve
de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis
complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte,
tratá-la (art. 26). Veja-se a força deste dispositivo que impede inclusive o
médico de forçar o paciente a se alimentar, devendo apenas cientificá-la dos
riscos do jejum e em caso de risco iminente de morte está obrigado apenas a
tratá-lo. É vedado ainda desrespeitar a integridade física e mental do
paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua
consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza (art. 27).
Por fim, proíbe o médico de desrespeitar o interesse e a integridade do
paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente
da própria vontade (vontade do médico) (art. 28).
Observe-se que aqui não se faz a ressalva a respeito do risco iminente. Por
que não precisava ou porque não exige o risco iminente de vida? Este volta a
aparecer apenas no artigo 31 ao tratar do relacionamento do médico com os
familiares do paciente, justificando eventual desrespeito do médico à vontade
da família. O que se observa de tudo isto é que o médico é livre para decidir
desde que haja iminente risco de vida. Então significa que o capítulo
relativo aos direitos humanos tem função apenas de discurso oficial para
agradar aos defensores dos direitos humanos, ficando ao livre arbítrio do
médico decidir se respeita em relação ao paciente o interesse, a integridade,
a dignidade, a livre decisão a respeito de sua pessoa e seu bem estar,
integridade mental com garantia de sua personalidade e consciência,
independentemente de sua consciência (do médico)? Logo se percebe que o
Código de Ética Médica é cardápio para todos os gostos. Tanto serve para
justificar o médico que deve agir em caso de risco iminente como para a
defesa dos que entendem que em alguns casos, desde que esteja em jogo a
defesa da consciência e personalidade do paciente a hemotransfusão deva ser
evitada. O Código está pronto a ser interpretado por qualquer hermeneuta que
parta de um grau zero de sentido, utilizando-se de termos contraditórios
contidos no referido Código, construindo então uma tese discricionária
palatável a qualquer apetite. Entretanto, cuida-se apenas de um Código de
Conduta voltado para a classe médica. É texto de cunho administrativo.
Vincula o médico, entretanto, não o paciente.
Fica de tudo isto a seguinte conclusão.
O Código de Ética Médica não resolve e nem aponta solução para o caso
concreto diante de suas contradições finalísticas. Corporativamente, neste
caso concreto, qualquer defesa é possível diante do Conselho Federal de
Medicina a partir do texto analisado, principalmente a que justifica a
atuação do médico, seja ela qual for, abstraída então a dignidade deste
estranho chamado paciente. Antes de voltarmos ao direito positivado há
necessidade de se responderem algumas perguntas. A hemotransfusão é sinônimo
sempre de manutenção da vida? Há riscos no tratamento hemoterápico? Há
alternativas para o referido tratamento? A transfusão de sangue nem sempre
garante a vida do paciente. É bem verdade que há uma eficácia comprovada de
resultados positivos da transfusão sanguínea em caso de choque hipovolêmico.
As chances de manutenção da vida aumentam muito, potencializando-se ao máximo
a liberação do oxigênio, reduzindo-se ao mínimo seu consumo. Mas isto por si
só não garante a manutenção da vida. A transfusão neste caso é meio
terapêutico cujo objetivo é manter o paciente com todas as potencialidades
químico-biológicas em funcionamento adequado para que a trincheira principal
não seja destruída na luta pela vida. Mas há as contingências. Em medicina
elas contam muito e são fundamentais. Quanto a isto a lei 10.205 de 21 de
março de 2001 no parágrafo 1º de seu artigo 3º afirma que a hemoterapia é uma
especialidade médica, estruturada e subsidiária de diversas ações médicas-sanitárias
corretivas e preventivas de agravo ao bem-estar individual e coletivo,
integrando, indissoluvelmente, o processo de assistência à saúde. Daí vê-se a
importância da terapia de transfusão, bem como do aproveitamento do sangue,
seus componentes e hemoderivados. (artigo 2º da mesma lei). Lamentavelmente a
lei que regulamentou o § 4º do artigo 199 da Constituição Federal de 1988 não
avançou na positivação da controvérsia, deixando ao intérprete autêntico a
solução da lide.
A segunda questão é se há riscos no tratamento hemoterápico. A resposta é
positiva. Uma simples consulta a qualquer consultoria ou repositório de
jurisprudência mostrará a pletora de ações judiciais voltadas contra o Estado
por suposta contaminação através de transfusão de sangue. Embora muitos
pedidos sejam julgados improcedentes, isto não significa dizer que não houve
a contaminação, pois há comprovação de que o único meio cem por cento seguro
de evitar qualquer contaminação em relação à transfusão é não fazê-la. A
rigor, não são somente os Testemunhas de Jeová que rejeitam conscientemente a
transfusão de sangue. Embora todos os esforços encetados inclusive pela
edição da lei 10.205/2001 e pela sensível melhoria na prestação deste serviço
essencial a todos, restou a desconfiança em face de tantos casos conhecidos
no seio da sociedade. Na prática do dia-a-dia, somente em casos extremos o
cidadão aceita pacificamente e sem ressalvas a transfusão. É cultural. É
fruto da racionalidade de que o sangue é portador de todas as heranças
vinculadas ao doador. Um mito de meias-verdades que não se aplica a meios e
modos de vida senão a heranças biológicas.
Sem embargo do risco de controle do sangue, há outros relacionados à
hemotransfusão, tais como os apontados por Luiz Ricardo Ligiera, Especialista
em Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Mestre
em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em
artigo publicado, onde afirma a respeito dos riscos transfusionais: Tratados
de medicina em geral indicam que as hemotransfusões envolvem riscos sérios,
às vezes letais, para os pacientes submetidos a tal forma de tratamento
médico. A pesquisa na moderna literatura médica expõe o erro de presumir que
a transfusão de sangue seja sempre uma terapia que "salva a vida".
Ela também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo. Em
recente e conceituado trabalho científico, Hébert et al. comprovaram uma
correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões
sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de
terapia intensiva. Os efeitos adversos das transfusões podem ser
classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas
transmitidas pelo sangue ou por hemoderivados; segundo, as chamadas reações
transfusionais, que podem ser de natureza imunológica, imediatas ou tardias,
e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas. Alguns
exemplos de doenças infecciosas, transmitidas por transfusões de sangue ou
hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais, são: a AIDS
(sigla, em inglês, para "síndrome da imunodeficiência adquirida",
causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas
pelos vírus B ou C, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus
de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (sigla, em inglês, para "vírus da
leucemia e linfoma de células T") e por bactérias ou protozoários. [21].
Mollison, Engelfriet e Contreras, na consagrada obra Blood Transfusion in
Clinical Medicine, declaram que "a maioria das mortes causadas por
transfusão de sangue são devidas à transmissão de vírus, bactérias ou
protozoários." E acrescentam: "Testes apropriados para exames
sistemáticos das unidades de sangue doado estão disponíveis para a maioria
dos agentes infecciosos capazes de causar significativa morbidade nos
receptores; porém, a maioria dos testes não detectam todos os doadores
infectados." Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados
com a hemoterapia, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão de
tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema
imunológico do paciente, provocando aumento das chances de contrair infecções
pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe
do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana,
comenta: "Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de
risco é evitar totalmente as transfusões." (grifo nosso).
Quanto ao último questionamento a resposta é positiva com ressalvas. A
tentativa de substituição do sangue alogênico em tais terapias tem sido uma
preocupação nas últimas décadas, seja para diminuir os riscos já apontados,
seja para oferecer tratamento alternativo aos que se recusam a fazer
transfusões, especialmente os Testemunhas de Jeová.
Citarei apenas algumas das alternativas com a ressalva de que em muitos casos
ainda não há uma palavra final da medicina. A hemodiluição; os aparelhos de
recuperação de glóbulos vermelhos, como o processador de células sanguíneas
Haemonetics 30 (associado a algumas complicações); anestesia hipotensiva; A
desmopressina; a eritropoetina; reposição intravenosa de ferro associada a
solução de nutrição parenteral total; pesquisas de solução de hemoglobina
humanas; O Fluosol DA 20% (FDA-20) (preparação de fluorocarbono), estes
constantes de documento juntado à contestação, etc. (fls. 99/106). Pode-se
incluir nesta lista a relação juntada por Wilson Ricardo Ligeira, entre elas,
os medicamentos que estimulam o corpo do próprio paciente a produzir os
diversos tipos de células sangüíneas (eritropoetina humana recombinante,
fatores recombinantes de estimulação do crescimento de colônias de
granulócitos e macrófagos, interleucina-11 etc.); agentes hemostáticos
(ácidos aminocapróico e tranexâmico, aprotinina, agentes hemostáticos
tópicos, adesivos de tecidos, vitamina K1 etc.); expansores do volume do
plasma que não contêm sangue (colóides e cristalóides) e os chamados
substitutos do sangue (perfluoroquímicos, hemoglobina recombinante e
polimerizada etc.). Acrescente-se aos medicamentos os equipamentos e
aparelhos que reduzem o sangramento ou que recuperam o sangue do próprio
paciente durante a cirurgia, tais como bisturis hemostáticos, dispositivos de
recuperação intra-operatória de sangue autólogo (comumente chamados
"cellsavers") e aparelhos de monitoração não invasiva de oxigênio
que reduzem as perdas ocasionadas por freqüentes coletas para exames
laboratoriais, entre outros. Estas terapias estão vinculadas evidentemente às
suas contingências e a grande maioria delas não pode ser utilizada em
momentos críticos de choque hipovolêmico, sendo a transfusão mais rápida e da
garantida eficácia intercorrente.
Sendo assim, em um momento crítico tendo o médico ciência de que o paciente
adulto e capaz, que deixou sua vontade expressa em um documento que está em
posse da família de não receber aquela terapia (hemotransfusão) deve ser
respeitada? Voltemos então ao direito positivado. Neste caso concreto não
cabe a aplicação defendida pela requerida da lei nº 9.434 de 04.02.1997 que
dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins
de transplante e tratamento e dá outras providências e que prevê ainda em seu
artigo 10º, autorização expressa do receptor para doação de órgãos em função
do dispositivo contido no parágrafo único do artigo 1º da citada lei in
verbis: Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos
entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.
Embora se possa apelar para um eventual progresso neste sentido, tal
argumento de necessidade de autorização do receptor se infirma diante da
exclusão expressa do sangue para os dispositivos desta lei e deveria ter sido
regulamentada pela outra legislação já aqui citada (lei 10.205/2001).
O Código Civil preceitua em seu artigo 13 o seguinte: Salvo por exigência
médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar
diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de
transplante, na forma estabelecida em lei especial. Tal dispositivo não
resolve a questão. A não disposição do próprio corpo aqui visa impedir que a
dignidade humana seja aviltada por interesses comerciais, por cupidez, por
transtornos ou qualquer outra forma que contrarie os bons costumes,
adjetivando-se a moral do homem médio, seja lá o que isso signifique na
ficção criada pelo legislador.
A recusa ao recebimento da transfusão nenhuma relação tem com a disposição do
próprio corpo. O artigo 15 do Código Civil, invocado pela requerente, também
não se aplica. Este diz o seguinte: Ninguém pode ser constrangido a
submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção
cirúrgica. Se é verdade que a transfusão é um risco em potencial, não deixa
de ser verdadeiro que nem todas as transfusões são riscos manifestos de vida.
Até uma penicilina pode causar risco de vida. Esta faculdade não pode tomar a
exceção pela regra. Desta forma, o caso concreto não se resolve por estes
dispositivos citados. Assim sendo, resta a Constituição Federal para a
solução da lide. O inciso II do artigo 5º afirma que: II - ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; O
que fica demonstrado até aqui é que não há lei que force a paciente/requerida
a se submeter a hemotransfusão. Nenhuma lei, regulamento ou mesmo o juramento
de Hipócrates a obriga a este tipo de tratamento. A idéia geral é a de que a
Constituição Federal de 1988 simplesmente prevê a inviolabilidade da vida
prevista no caput do artigo 5º, sem que se considere sua interpretação de
forma harmônica com o direito ínsito no interior da própria Carta Magna e até
mesmo com os incisos que complementam o referido caput. Não se pode esquecer
a lição já reiteradamente aqui lembrada de que não se interpreta o direito em
tiras, aos pedaços. A Constituição está eivada de outros dispositivos que
integram a expressão do que se passou a chamar de dignidade da pessoa humana.
Aliás, este é fundamento do Estado Republicano e Democrático de Direito
expressamente previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de
1988. Tal princípio consta do grande conjunto de princípios de ordem política
segundo a lição de INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, incluindo tal princípio na
categoria de valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional. Tal
fundamento da República leva ao objetivo fundamental de promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação. (art. 3º, IV). Quanto a liberdade de crença, o
artigo 5º (o mesmo que é utilizado em seu caput para justificar em alguns
discursos a ação médica independente do que pensa o paciente ) afirma em seu
inciso VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (grifo nosso).
Aplicando-se ao caso concreto não vejo antinomia entre o caput da referido
artigo que garante inviolabilidade à vida e este inciso. A crença professada
pelos Testemunhas de Jeová, neste aspecto, que é o que nos interessa ( a
hemotransfusão), em nenhum momento prega qualquer doutrina que afronte a
vida, que faça apologia ao suicídio, que recomende a busca leviana de uma
vida melhor no paraíso e que por isto é necessário se buscar o fim à vida, a
não ser a partir da recomendação comum a todos os cristãos escrita pela pena
do próprio apóstolo Paulo ao afirmar que melhor era estar com Cristo . Ora,
nem por isto o conhecido apóstolo tinha fama de suicida e pelo contrário
amava a missão que lhe fora concedida em vida, afirmando a história ter
recorrido até o fim para não ter uma morte indigna. O que se quer dizer com
isto é que a recusa tem origem em assentamento doutrinário, que certo ou
errado, falso ou verdadeiro, deve ser respeitado diante da demonstração cabal
de que a paciente quer viver a ponto de procurar um hospital a fim de buscar
tratamento que lhe permita continuar vivendo.
Em vista do prontuário da paciente não tenho dúvidas que a mesma procurou o
hospital com o único intuito de buscar qualquer tratamento que lhe minimize a
dor, excetuado o tratamento hemoterápico pela via da transfusão. É o que diz
expressamente o documento assinado pela paciente com cópia às fls. 85.
Não importam as fundamentações que subjazem à recusa, basta que haja a
manifestação de vontade da paciente que está fundamentada em razões pessoais
de cunho eminentemente religioso. É fato que a paciente deseja ser tratada
por qualquer outra terapia menos a transfusão. Cientificada dos riscos da não
transfusão, deveria receber a totalidade do tratamento adequado para
minimizar-lhe a dor através de todo o conhecimento científico existente,
ainda que isto importasse em custos adicionais ao governo, ao sistema de
saúde ou à instituição particular. Novas terapias neste aspecto estão sendo
desenvolvidas mundo afora, sujeitas a verificação e testes ou mesmo simples
tentativa de rotinização nos hospitais, embora com custos adicionais.
Remanesce a pergunta: Mesmo em casos extremos deveria ser obedecida a vontade
do paciente? Sim, mesmo em casos extremos. Aqui se justifica com a dignidade
da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana conforme exposto
anteriormente se acha estreitamento vinculado à noção de pessoa e de
personalidade, sendo que, a dignidade constitui a dimensão moral da
personalidade que tem por fundamento a liberdade e autonomia da pessoa. A
dignidade da pessoa humana inclui-se na afirmação positiva do pleno
desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo (Perez Luño, 2006). Não há
nada mais precioso, para aquele que crê em algo, do que a certeza de sua fé.
A certeza de que sua ética cotidiana influenciará de alguma forma sua
passagem para outro plano de vida (nos termos de seu ideário). Há éticas
positivas e outras negativas que destroem os seres humanos em geral,
incluindo terceiros. Não é desta última que se quer falar, mas, daquela
vivenciada por pessoas que acreditam firmemente que a subsunção a um tipo de
procedimento médico, afastará o paciente definitivamente da promessa que
acredita (de recompensas celestiais), em caso de descumprimento de tal
preceito nesta vida. A partir daí, não é difícil entender que esta pessoa
lutará pela vida de todas as formas, como de fato a requerida luta, porém,
dará sua vida para não ofender sua consciência e sua fé.
Grande parte do arcabouço jurídico infraconstitucional está voltado para o
respeito à consciência e autonomia da pessoa, partindo-se do pressuposto de
que a mesma não está optando por morrer, mas pela expectativa de que seja
aplicada outra técnica que lhe salve a vida, deixando claro que não autoriza
a transfusão. Muitos teriam poupado a sua vida se na noite de São Bartolomeu
houvessem simplesmente violado suas consciências e isto por si só não
significa que não quisessem viver A partir desta visão da dignidade humana
como vetor estruturante da CRFB, passa então tão princípio a abarcar não
somente a garantia da vida biológica, mas, a higidez moral e espiritual,
sendo necessário que se imagine algumas situações na prática. A primeira,
partindo-se do fato de ter sido um sucesso absoluto a transfusão no
tratamento oncológico. A segunda, de insucesso da transfusão com interstício
razoável entre o tratamento e eventual óbito. No primeiro caso, tomando-se em
conta a fé da paciente, a cura poderia equivaler à destruição de todos os
seus anseios, de todos os seus sonhos e projetos de vida. Passaria, a partir
de convicções peculiares de sua comunidade religiosa a se sentir uma impura,
sem perspectivas de alcançar a meta espiritual para a qual se acha
vocacionada.
Sob seu próprio conceito, se tornaria uma pessoa diferente no seio de sua comunidade,
de sua família e de seus amigos mais queridos. Teria sua vida virada do
avesso, perdendo o rumo e o tino e quem sabe sua própria identidade. Sua vida
espiritual se resumiria a uma grande dúvida a respeito de seu próprio
destino. Seria rejeitada por sua comunidade e em seguida seria vítima de
conflitos familiares, sejam eles idiossincráticos ou não. Tudo isto é
possível. Uma possibilidade terrível para sua pessoa e personalidade. No
segundo caso, imagine-se um paciente terminal cujo único consolo é a fé que
guarda dentro de si e cujo único anseio é de alguma forma procurar fazer a
vontade da razão de sua fé, de seu Deus, de cumprir sua promessas finais no
momento mais crítico pelo qual possa atravessar um ser humano cuja única
certeza que deseja ter neste momento é a aceitação de seu Deus ao seu
espírito (segundo os ditames da sua consciência). Como acalmar o espírito no
momento crepuscular da vida senão através da fé na racionalidade metafísica
que se aprendeu a desenvolver no curso da vida? Isto sem se falar na dor
moral, que para o direito é a dor que não se quantifica, mas se qualifica.
Sem falar ainda na dor da família em ver talvez a última vontade de seu ente
querido realizada, ou seja, ser tratado de forma alternativa.
O quadro acima descrito guarda alguma relação com o princípio da dignidade da
pessoa humana? Há alguns que afirmam se tratar de choque de princípios
(inviolabilidade à vida x dignidade da pessoa humana). Não vejo desta forma.
Não há aqui, neste caso concreto, senão uma amplitude da inviolabilidade do
direito à vida digna. Não se pode entender que a Constituição Federal admita
a vida de outra forma que não seja na expressão de sua dignidade e isto
significa levar em conta a riqueza cultural do ser humano que não quer
morrer, porém, que viver sob o pálio de uma autonomia de condutas éticas
reconhecidas pelo seu meio (ethos) e aprovadas por seu sistema jurídico. Daí
que não se pode esquecer que a dignidade da pessoa humana é fundamento da
República como dito antes (art. 1º, III CRFB) e que não se pode considerar o
caput do artigo 5º isoladamente, na medida em que seus incisos indicam em que
termos os direitos ali contidos serão exercidos. Significa dizer, então, que
a Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida (caput) não sendo
a pessoa obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei (II), sendo inviolável sua liberdade de consciência e de crença (VI).
Imaginar o direito à vida a partir de um grau zero de sentido é o mesmo que
dizer que é possível torturar, mas não se pode matar a partir da tortura
porque a vida é inviolável. Ora isto é absurdo, pois a inviolabilidade do
direito à vida deve ser conjugado com o inciso III do mesmo artigo 5º, que
proíbe terminantemente a tortura. Reitero que sendo a dignidade da pessoa
humana fundamento da República, a inviolabilidade do direito à vida é a
inviolabilidade do direito à vida digna. Por isto não cabe aqui qualquer
aplicação do princípio da proporcionalidade. Não vejo dois princípios em
colisão. Não vejo como averiguar necessidade, adequação e proporcionalidade
em sentido estrito diante da ausência de colisão de princípios. O que ocorre
na realidade é a negação a um direito fundamental de liberdade de consciência
e crença, ou seja, a negação a um princípio e não colisão entre mais de um.
Aliás, este é um direito fundamental de qualquer cidadão e não apenas dos
Testemunhas de Jeová. Não havendo crença, deve o Estado respeitar a
consciência do ser humano nos termos propostos e constantes na Constituição.
Repito que não se cuida de fazer apologia ao suicídio, isto é outro fato e
outra circunstância. O direito ao suicídio não é contemplado em nossa
Constituição e não é esta a discussão. A paciente está em busca de
tratamento. Quer viver, porém, viver de acordo com sua fé, buscando
tratamento adequado a sua fé, necessário ao seu bem estar, proporcionalmente
maior que todo o direito arvorado pelos médicos em ficar tranqüilos com sua
consciência.
Em que pese a coincidência das palavras não se trata de utilização de
postulado normativo aplicativo. É possível então que o sofrimento moral da
paciente seja minorado? A não ser que haja regras específicas nos seus dogmas
de fé, a outra alternativa seria renunciar a sua crença. Isto para qualquer
um que discorde dos postulados da fé da paciente não significa nada. É apenas
mais um cristão cooptado à ética da maioria.
Mas isto pode significar ao fim e ao cabo a desnaturação da identidade da
paciente. Pode ser tudo para ela e neste aspecto, ninguém, nem o Estado, tem
o direito de interferir a esse respeito. Para a medicina basta que não haja
morte cerebral e um coração batendo para trombetear que a missão está
cumprida? A racionalidade da ciência não pode mais preponderar abstraindo-se
o caráter da racionalidade social que faz parte da construção do ser humano
enquanto personagem de múltiplos papéis. Ou seja, a medicina não tem o
direito de, podendo buscar novas alternativas para garantir o direito
fundamental à liberdade de consciência e crença, utilizar-se de números frios
para decretar que a cura prescinde da saúde moral, da higidez da dignidade de
cada ser humano e que a vida se resume a neurônios funcionando e coração
pulsando.
Embora em contexto um pouco diferenciado não custa lembrar as palavras de
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: Estamos de novo regressados à necessidade de
perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo conhecimento do
valor dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais e coletivos,
criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em
considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente, de perguntar
pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou
empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou
negativo da ciência para a nossa felicidade. Neste caso concreto, não importa
em que base está sustentada a racionalidade da paciente, se suas convicções
são verdadeiras ou falsas (o direito não se ocupa disto) ou se para os
médicos é apenas uma besteira. Para ela é tudo e este direito é protegido por
regras constitucionais que estão sustentadas em princípios inarredáveis de
nossa cotidianidade. É preciso escapar de lugares comuns que nada exprimem
enquanto exteriorização de princípios. Frases como Não existem deuses sem
vida; Sem vida não há Deus; Deus é a favor da vida; morto não tem religião; o
princípio da vida (sic) é maior que tudo (?) sem uma justificação jurídica,
se prestam apenas para a construção de frases de efeito como discurso de
correção e discricionário, impondo-se por vezes a visão de mundo do
interlocutor. Há outro efeito secundário a par de tudo isso. Ninguém é
obrigado a dirigir-se a um hospital para buscar tratamento de uma moléstia
qualquer. O ser humano é livre para escolher morrer em casa ou minorar sua
dor em um nosocômio. Ninguém pode interferir nisto, por mais doloroso que
pareça.
Os Testemunhas de Jeová não podem se tornar um grupo aterrorizado pela ameaça
constante da violação de sua fé. De outra forma estaremos diante de um fato
inusitado. Muitos dos que poderiam minorar a sua dor buscando um certo
conforto, evitarão os hospitais, fazendo com que a proteção à vida humana se
volte contra estes seres que desejam ser tratados com o respeito a sua fé,
além do que, é conhecida a necessidade de uma certa dose de otimismo e moral
alto em qualquer terapia, que funcionam como coadjuvantes essenciais na
recuperação do paciente. Por isto a lei 8.080/90 que dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências (SUS)
exige a observância entre outros dos seguintes princípios: Art. 7º As ações e
serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados
que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com
as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda
aos seguintes princípios: III - preservação da autonomia das pessoas na
defesa de sua integridade física e moral; IV - igualdade da assistência à
saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; A preservação da
autonomia das pessoas, portanto, não se esgota em sua integridade física, mas
alcança sua integridade moral. Apenas a título de argumentação é necessário
se dizer que a norma surge a partir do caso concreto. A paciente é capaz e
adulta. E se não fosse? Então estaríamos diante de outro caso sendo
inaplicáveis tais argumentos no caso de tratar-se de criança ou mesmo
adolescente, pois nem a garantia do pátrio poder pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente seria capaz de afastar o princípio da proteção insuficiente
(untermassverbot) com aplicação do princípio da proporcionalidade diante do
fato de que ninguém pode decidir a respeito da prescindibilidade de terapia
em caso de risco de vida em relação a terceiros menores, ainda que o
fundamento seja lei em vigor, o que não é a discussão aqui.
Assim sendo, passo a concluir.
A hemotransfusão nem sempre significa manutenção da vida e nem é sinônimo
exato desta. Há alternativas médicas em estudo que possibilitam a troca de
terapia. Em casos de choque, sendo o paciente adulto e capaz, desde que o
médico tenha ciência da vontade do paciente, esta deve ser respeitada por ser
protegida como um direito fundamental indisponível e inerente a sua
personalidade. Não vejo regra infraconstitucional que obrigue o médico a
violar a vontade legítima do paciente em optar por outro tratamento que se
adeque a sua consciência e crença. A regra constitucional que torna coerente
e sustenta a integridade do direito a ser respeitado neste caso é o
fundamento republicano fundado no princípio da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, II), que enquanto princípio deve ser respeitado e cuja reconstrução
histórico-institucional aponta para um antropocentrismo alargado, vendo o
homem como componente de uma realidade a qual está inserido como ator e não
como simples objeto, deslocado da visão puramente biológica, cujo direito
fundamental à inviolabilidade da vida digna está garantido pelo caput do artigo
5º, ganhando amplitude no caso concreto quando analisado em conjunto com o
inciso VI do mesmo artigo (inviolabilidade do direito à consciência e crença)
qualificando seu direito à vida, conferindo-lhe a dignidade necessária para
caminhar e conviver em sua comunidade ao exigir do Estado e do particular que
se abstenham de violar tais direitos, recusando-se a ser submetido
compulsoriamente à hemotransfusão.
Ante o exposto julgo improcedente o pedido. Tendo em vista que a liminar
ainda não foi cumprida fica desde já revogada.
Custas na forma da lei. Condeno o vencido ao pagamento de 20% (vinte por
cento) sobre o valor da causa. Transitado em julgado, arquive-se.
P.R.I.C. Belém, 17 de novembro de 2009.
MARCO ANTONIO LOBO CASTELO BRANCO
Juiz de Direito da 2ª vara da Fazenda de Belém
fonte:
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário