Os pequenos enjeitados
A rejeição, o infanticídio e a prática do abandono de crianças
recém-nascidas pelas mães já eram uma realidade social na cidade de São Paulo
no período dos anos oitocentos...
Por Robson Roberto da Silva
Segundo o historiador Renato Pinto Venâncio, havia
uma grande diferença entre expor e enjeitar uma criança recém-nascida. Enquanto
que o primeiro era deixar a crianças em qualquer lugar, expostas aos maiores
perigos; o segundo referia-se a entregá-la aos cuidados de outras pessoas ou a
entidades religiosas
Condições precárias
Os expostos que davam entrada no Hospital da Santa Casa de Misericórdia
recebiam os primeiros cuidados, eram registrados no Livro de Entrada e, depois,
batizados. O sistema de atendimento das crianças expostas não era satisfatório,
suas instalações eram acanhadas e as condições higiênicas eram péssimas.
A sociedade exigia providências com relação às
mortes e ao excesso de abandonos de crianças pelas ruas e portas das casas.
Somente no início do século 19, o governo provincial e a Igreja Católica
inauguraram a Roda dos Expostos, em 2 de setembro de 1825, no Hospital da Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo. Foram inaugurados também o Recolhimento
Feminino - denominado Seminário da Glória e o Internato Masculino, denominado
Seminário de Sant'Anna.
Essas
entidades não recebiam ajuda financeira do governo provincial, especialmente
depois da promulgação da Lei dos Municípios de 1828 que transferia toda a
responsabilidade sobre os expostos para a Santa Casa. Assim, sobreviviam por
meio de doações das famílias ricas ou de outros rendimentos menores. Diante de
tal quadro de carestia, não é de surpreender a alta mortalidade infantil dentro
dessas instituições. Além disso, havia casos das crianças expostas estarem em
estado doentio tão avançado que era impossível qualquer atendimento médico - sendo
que muitos bebês eram encontrados mortos dentro da roda.
O
acolhimento dos expostos não era um "asilo de crianças" e elas não
permaneciam por muito tempo. Após entrada, registro, batismo - e dos primeiros
cuidados -, os recém-nascidos eram enviados para amas de leite mercenárias para
amamentá-los, elas recebiam cinco mil réis por criança, e as amas secas, quatro
mil réis. A mortalidade acompanhava as crianças durante a amamentação, devido à
falta de cuidados das amas de leite com a higiene, contraindo doenças por meio
do leite materno.
Como
as amas eram negras livres e pobres, ou escravas alugadas pelos seus senhores,
cada uma tinha que amamentar o maior número possível de bebês abandonados para
aumentar seu rendimento, assim, não tinham como dar os cuidados necessários
para a grande quantidade de recém-nascidos que amamentavam. Raríssima era a
cena de uma única ama de leite cuidar e zelar por uma única criança, isso seria
um privilégio dos filhos dos senhores de escravos.
A "roda" consistia de um cilindro de
madeira oco instalado no muro do Hospital da Santa Casa com uma abertura
voltada para a rua onde se depositava o recém-nascido, esse cilindro girava em
torno do seu próprio eixo e ao girá-lo, a abertura dava acesso à parte de
dentro do Hospital, após isso, tocava-se a sineta avisando a freira, que ia
buscar a criança exposta
Por
fim, os expostos ficavam aos cuidados das amas-de-leite até os 7 anos de idade,
depois disso, seriam enviadas para as instituições de caridade, as meninas eram
internadas no Seminário da Gloria e os meninos eram internados no Seminário de
Sant'Anna, onde receberiam a adequada educação para a formação de cidadãos
úteis a sociedade, outras eram adotadas por famílias criadeiras, nas quais
seriam utilizadas nos serviços domésticos e nas atividades e tarefas da
economia familiar.
Esse
sistema de assistência a infância abandonada fundamentado na caridade e piedade
cristã, onde a participação da Igreja Católica foi essencial, vigorou por todo
o século 19, sendo criticado apenas nas ultimas décadas daquele século e nas
primeiras décadas do século 20 pelos médicos e higienistas.
No
exemplo apresentado das crianças expostas e enjeitadas em São Paulo no século
19, percebemos que a questão da infância abandonada não é nova, mas perpassava
em todo processo histórico no Brasil.
Perguntarmo-nos
por que o costume do abandono de crianças recém-nascidas ainda permanece em
nossos diais? Porque tanto o Estado como a sociedade civil sempre foi
totalmente ausente e negligente sobre essas questões sociais e ambos possuem
uma enorme dívida social com as populações mais empobrecidas, principalmente
com as crianças abandonadas.
A roda
Ilustração do abandono de uma criança na Roda dos Expostos, séc. 19
ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaskman.
Rio de Janeiro: Editora LTC, 1981.
FREYRE,
Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003.
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Maria Luíza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
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Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
VENÂNCIO,
Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares
no Rio de Janeiro e em Salvador. Campinas: Papirus, 1999.
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