O voto é bastante antigo, porém vale a pena ser
lembrado:
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA - SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO
AGRAVO DE INSTRUMENTO N° 1.001.412-0/0
COMARCA - MARÍLIA
AGRAVANTE - ISAÍAS GILBERTO RODRIGUES GARCIA
(REPRESENTADO POR SUA MÃE: ELISANGELA ANDREÍA RODRIGUES)
AGRAVADO - RODRIGO DA SILVA MESSIAS (NÃO CITADO)
V O T O N° 5902
Ementa:
Agravo de instrumento
– acidente de veículo - ação de indenização decisão que nega os benefícios de
gratuidade ao autor, por não ter provado que menino pobre é e por não ter
peticionado por intermédio de advogado integrante do convênio OAB/PGE
inconformismo do demandante - faz jus aos benefícios da gratuidade de Justiça
menino filho de marceneiro morto depois de atropelado na volta a pé do trabalho
e que habitava castelo só de nome na periferia, sinais de evidente pobreza
reforçados pelo fato de estar pedindo aquele u'a pensão de comer, de apenas um
salário mínimo, assim demonstrando, para quem quer e consegue ver nas
aplainadas entrelinhas da sua vida, que o que nela tem de sobra é a fome não
saciada dos pobres - a circunstância de estar a parte pobre contando com
defensor particular, longe de constituir um sinal de riqueza capaz de abalar os
de evidente pobreza, antes revela um gesto de pureza do causídico; ademais,
onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos
pobres para defendê-lo ? Quiçá no livro grosso dos preconceitos... -
Recurso provido.
O menor impúbere Isaias Gilberto Rodrigues Garcia, filho de marceneiro que
morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta na volta a pé do trabalho,
fez-se representado pela mãe solteira e desempregada e por advogado que esta
escolheu, para requerer em juízo, contra Rodrigo da Silva Messias, o autor do
atropelamento fatal, pensão de um salário mínimo mais indenização do dano moral
que sofreu (fls. 13/19).
Pediu gratuidade para demandar, mas esta lhe foi negada por não ter provado que
menino pobre é e por não ter peticionado por intermédio de advogado integrante
do convênio OAB/PGE (fls. 20) .
Inconforma-se com isso, tirando o presente agravo de instrumento e dizendo que
bastava, para ter sido havido como pobre, declarar-se tal; argumenta, ainda,
que a sua pobreza avulta a partir da pequeneza da pensão pedida e da
circunstância de habitar conjunto habitacional de periferia, quase uma favela.
De plano antecipei-lhe a pretensão recursal (fls. 31 e Vo), nem tomando o
cuidado, ora vejo, de fundamentar a antecipação.
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 34/37).
É o relatório.
Que sorte a sua, menino, depois do azar
de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele
-, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia.
Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do
distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim,
com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador
- legada, olha-me agora.
É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando
o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e
com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas
que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que
nestes vêem apenas papel repetido.
É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que
trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola
coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam
na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e
do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a
certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os
marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular
deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era.
Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um
é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte
Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de
apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer.
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o
que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres. Por
conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar
contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou
inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao
revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em
troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia
d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais
superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados
dos pobres para defendê-lo ?
Quiçá no livro grosso dos preconceitos... Enfim, menino, tudo isso é para dizer
que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a
plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares
de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro voto.
PALHA BISSON
Relator Sorteado
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