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domingo, 15 de março de 2015

Gestação de um feto anencefálico, valores e crenças


A matéria a seguir traduz uma das muitas inquietações presentes na mente dos operadores do Direito. Sua leitura pelos estudantes ou profissionais deve ser realizada com o necessário espírito crítico próprio da profissão. Há muito que se aprender com o texto.

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Conforme é cediço por todos, o feto anencefálico é aquele que é privado de encéfalo, sendo, portanto, destituído de atividade cerebral e goza de vida (vegetativa) intra-uterina que o permite, em raras vezes, evoluir, chegar a termo e nascer, embora, após pouco tempo, venha, fatalmente, a morrer clinicamente, o que se dá com a completa e irreversível parada cardiorrespiratória.
 

Uma vez ciente das condições e possibilidades de sobrevivência de um feto anencefálico, faz-se mister analisar quais as consequências de uma gestação, nestas condições, para a genitora, levando-se em conta os fatores físicos e emocionais. De modo sucinto, pode-se dizer que a gestação é um processo modificador do corpo feminino, seja no âmbito biológico ou psíquico. Assim, ainda que se dê nas condições ditas "normais", já exerce significativa influência nas condições de vida da mulher e, de modo indireto, implica em modificações psíquicas para o genitor.
 

Em se tratando de feto anencefálico, os danos psíquicos são de grande relevância, tendo em vista o sentimento de perda que permeia toda a vida da gestante, bem como a sua família, seja ela biológica ou afetiva. Os danos causados por uma gestação deste tipo podem ser irreversíveis, frente aos distúrbios psicológicos que pode sofrer a genitora frente à tamanha perda. Mas não é o bastante analisar o aborto apenas do ponto de vista biológico e psíquico, mas também do ponto de vista jurídico. O que fazer o operador do direito diante de um pedido de autorização para realização de aborto do feto anencefálico, frente ao ordenamento jurídico que tipifica o aborto no seu Código Penal, impondo-lhe severa pena?
 

Ora, o ordenamento jurídico pátrio, por se tratar de um estado democrático de direito, fundamenta-se, de acordo com a Constituição Federal de 1988, no princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Deste modo, por se tratar de fato não previsto pela legislação, contudo, fruto da sociedade da qual emana e deve sempre emanar o direito, tal pedido deve ser analisado sob o prisma do trinômio fato-valor-norma.  Assim, deve ser levado em conta não apenas a norma, mas também o valor maior da nossa legislação, que é a dignidade da pessoa humana, e, ainda, que a gestação de um feto anencefálico é um fato que repercute de modo direto e decisivo na vida de um ser humano igualmente dotado de valores e crenças. 
 

A cada ser é dado o livre arbítrio, logo tem este o direito de ver a vida e interpretá-la a partir das suas crenças e experiências. Desta forma, não cabe ao operador do direito julgar os valores e crenças de cada ser, mas fazer a subsunção das normas aos fatos invocando os princípios fundamentais do ordenamento jurídico, tais como a Dignidade da Pessoa Humana e a Isonomia. 
 

Com isto, é indispensável que se considere o quão é relativo o conceito de dignidade que varia de acordo com os princípios e valores individuais de cada ser e que respaldado pela Isonomia deve ser tratado com relevante variação, uma vez que a isonomia nada mais é do que tratar igualmente os iguais e tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades.  

Com base nestes princípios, conclui-se que não cabe ao operador do direito, neste caso, invocar os seus valores e crenças pessoais ao julgar tal mérito, mas sim considerar e respeitar os valores e princípios da impetrante, bem como a sua livre manifestação de vontade. Assim, o aborto anencefálico deve ser regulado pelo ordenamento jurídico pátrio, fazendo parte do rol das exceções penalmente prevista no Código Penal vigente. Adestarte, uma vez considerando que deve ser respeitada a livre manifestação de vontade da impetrante, todo e qualquer pedido que verse sobre esta matéria deve ser deferido pelo magistrado, haja vista que ninguém melhor do que a própria genitora para saber se tem, ou não, condições físicas e emocionais para suportar uma gestação nestas condições, tamanho é o sofrimento físico e psíquico que lhe é imposto.
  
Autora:
Thais Elislaglei Pereira Silva da Paixão


Fonte: http://jornal.jurid.com.br/materias/doutrina-penal/aborto-anencefalia-uma-questao-valores-crencas/

Aborto - Sentença



Inviabilidade dos fetos

Processo nº001 2002 019006-0

Autores: Cristiane de Alcântara Santana e José Aderson Gonçalves de Brito
SENTENÇA: Vistos, etc. CAS e seu companheiro JAGB, ambos devidamente qualificados na peça inaugural alegando, em resumo, que:

 “...em decorrência de má formação congênita dos fetos, comprovada cabalmente por médicos, como forma de evitar amargura e sofrimento psicológico da mãe que aliada ao fato de que a continuidade da gravidez põe, comprovadamente, a vida da Requerente, e, de antemão, sabe que os filhos não terão qualquer possibilidade de sobrevida...”, requerem autorização para interrupção da gravidez.  A inicial foi instruída com as procurações e os documentos de fls. 11/23.

Com vistas dos autos o Ministério Publico ofereceu às fls. 25/27 , opinando pelo deferimento do pedido. Está feito o relatório.

Passo a decidir.

O art. 128 do Código Penal Brasileiro autoriza duas hipóteses de exclusão da antijuricidade em face do delito de aborto: o aborto necessário (inciso I) e o aborto sentimental (inciso II). Para a questão sub judice, importa ressaltar o que diz o inciso I do artigo 128 do Código Penal. “Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante:” O dispositivo legal acima enfocado é claro. Permite-se o aborto praticado por médico para evitar a morte da mãe, independentemente das condições do feto. No dos autos, a requerente CRISTIANE DE ALCÂTARA SANTANA encontra-se entre as 13ª e 14ª semanas de gestação, com dois fetos unidos pelo tórax e abdômen, com duas colunas vertebrais, quatro membros inferiores e superiores, entretanto, existe apenas um coração, fato que torna a vida intra-uterina é absolutamente inviável conforme pareceres médicos de fls.

Embora o Código Penal em vigor, que é de 1940, não tenha previsto expressamente a autorização do aborto nos casos em que há constatação da impossibilidade de vida extra-uterina do feto, como é a hipótese dos autos, cuido que o pleito ora formulado deva ser deferido, pois de um magistrado exige-se muito mais do que a aplicação pura e simples da letra fria da lei.

Aliás, o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil diz que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” Interpretar a norma jurídica, observando o avanço da ciência e atendendo às modificações introduzidas nos usos e costumes de uma sociedade é tarefa indispensável para todos aqueles que buscam a verdadeira justiça.

Pois bem. Em 1940, data em que entrou em vigor o atual Código Penal, a medicina não dispunha dos recursos que atualmente dispõe. Situações que no passado eram imprevisíveis, hoje podem ser antevistas. Naquela época, a medicina não havia avançado o suficiente para fornecer dados confiáveis sobre a saúde do feto e da impossibilidade de vida extra-uterina.

Hoje, a ultra-sonografia e outros exames de alta precisão permitem um diagnóstico seguro, como é o caso dos autos em que se constatou a inviabilidade dos fetos, por serem portadores de dois corpos unidos pelo tórax e abdômen, mas dotados de apenas um coração.

Desse modo, obrigar a Requerente a manter uma gravidez nestas circunstâncias seria cruel e desumano, pois além do risco natural de uma gestação desse tipo, poderia implicar num gravíssimo comprometimento psicológico para a pessoa da Requerente. O judiciário não pode, por capricho, deixar de autorizar a Requerente a interromper uma gravidez sem a menor possibilidade de êxito, sobretudo porque é princípio constitucional que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante. (art. 5°, inc. III, da C.F.)”.

Por todas estas razões e por considerar ainda que da Requerente não se poderia exigir outra conduta, com fundamento no art. 5°, inc. III, da C.F., c/c o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 128, inciso I, do Código Penal, julgo procedente o pedido para AUTORIZAR a interrupção da gravidez de CRISTIANE DE ALCÂNTARA SANTANA, a ser efetuada em nosocômio de escolha da Requerente.

Sem custas, P.R.I. Recife,

ANTÔNIO FRANCISCO CINTRA, Juiz de Direito.

Aborto - Anencefalia fetal



Comprovada inviabilização da vida extra-uterina - Pedido instruído com laudo médico irrefutável da anomalia e suas consequências e com favorável parecer psicológico do casal - Consentimento expresso do pai - Evidência de risco à saúde, especialmente mental da gestante - Interpretação extensiva da excludente de punibilidade prevista no inciso I do Art. 128 do CP - Aplicação dos princípios da analogia admitidos do Art. 3° do CPP - Autorização concedida - Apelo provido.

Diante da solicitação de autorização para realização de aborto, instruída com laudo médico e psicológico favoráveis, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro , e evidenciado o risco à saúde desta , mormente a psicológica, resultante do drama emocional a que estará submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovado cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez

Vistos, relatados e discutidos esses autos de apelação criminal n.° 98.003566-0, da comarca de Videira (2ª Vara/Fazenda Pública), em que é apelante NC dos S., sendo apelada a Justiça, por seu Promotor:

Acordam, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, prover o recurso para conceder o alvará judicial para realização do aborto.
Custas na forma da lei.

Perante o Juízo da comarca de Videira, NC dos S. ingressou com pedido de alvará judicial para realização do aborto, argumentando, em síntese, que vive há mais de 12 anos com AL, sendo que no final do mês de dezembro de 1977 engravidou do primeiro filho do casal, o que a fez procurar assistência médica para realização de exame pré-natal, oportunidade em que lhe foi requisitada uma ecografia obstétrica (ultra-sonografia) , que realizado, em 13/02/1998, constatou-se possível existência de anomalias no feto, correlacionadas à anencefalia, sugerindo os médicos, então, a feitura de novos exames para comprovação da situação.

Em 27 de fevereiro, a autora submeteu-se a uma segunda ultra-sonografia, que confirmou a má formação fetal, notadamente no que diz respeito ao segmento encefálico, motivo bastante para ser a gestante encaminhada para clínica especializada nesta Capital, a fim de realizar exame de ultra-sonografia morfológica fetal, que, levado a efeito em 03 de março, atestou definitivamente, a existência de anomalias fetais, consistentes em "anencefalia; extenso disrafismo da coluna tóraco-cervical (aberto), retroflexão da cabeça fetal em relação ao tronco", incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, como concluiu o médico que subscreveu o laudo (documento de fls. 19).

Alega que a continuidade da gestação, diante da situação do feto, poderá provocar-lhe irreparável dano psicológico, além do desnecessário prolongamento de seu sofrimento; diz que da gravidez poderão advir resultados dos mais diversos, como a possibilidade de alteração comportamental no decorrer do período gestacional, pois estará gerando um ser que comprovadamente falecerá assim que nascer; argumenta, por fim, a possibilidade dos riscos à sua saúde que qualquer gravidez acarreta.
Amparada no que dispõe o Art. 128, I, do Código Penal, que não pune o aborto necessário no caso de risco de vida à gestante, norma que entende aplicável analogicamente ao caso, haja vista o risco de dano à sua saúde, especialmente a mental, requereu a concessão de alvará judicial para interromper a gravidez.
Juntou os documentos de fls. 09 a 23.

Após parecer favorável do Ministério Público, e por requisição deste, foram ouvidos a autora e seu companheiro, que reafirmaram a intenção de realizar o aborto, bem como declararam ter conhecimento das possíveis consequências de uma interrupção da gravidez; juntou-se em seguida, também a requerimento do Parquet a quo, parecer psicológico, que concluiu que tanto a requerente quanto seu companheiro apresentavam "lucidez e informação suficiente para uma decisão consciente e irrevogável quanto a interrupção desta gravidez", motivo pelo qual o órgão ministerial ratificou o posicionamento anterior.

O togado singular, sustentando que não há previsão legal para a concessão, já que a hipótese descrita nos autos não está dentre aquelas não puníveis no Art. 128 do Código Repressivo, e ainda por questões de ponto de vista emocional, moral, espiritual e ético, houve por bem negar a autorização requerida.
Inconformada a requerente recorreu, objetivando a reforma do decidido, para que lhe seja concedido o alvará judicial colimado, a fim de que possa evitar o prosseguimento da gestação.
Contra-arrazoado o recurso no sentido da concessão do alvará, os autos ascenderam a esta Instância, onde a ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se pelo seu conhecimento e provimento.

É o relatório.

1 - Embora nominado como "recurso ordinário", o apelo interposto está previsto no inciso II do Art. 593, do CPP, uma vez que objetiva a reforma de decisão definitiva ou com força de definitiva, proferida por Juiz singular, e foi interposto a tempo, pois na data do ajuizamento ainda não haviam sido intimadas autora ou seu advogado.
Assim o recurso é próprio e tempestivo, merecendo ser conhecido.

2 - No mérito, merece ser reformada a decisão de Primeiro Grau. A apelante, de posse de exames médicos comprovadores de que o feto que está gerando é portador de anomalias que impedirão sua sobrevida extra-uterina, aforou pedido de autorização judicial para efetuar o abortamento, sustentando que esta gravidez lhe trará danos psicológicos consideráveis, já que, caso leve-a a termo, sabe que estará trazendo no ventre, por nove meses, um malformado, com chance alguma de sobrevivência.

O desejo de abortar foi ratificado quando ouvida pela autoridade judicial, ocasião em que declarou:

"(...) Estou grávida já no 4° mês de gestação. Através de exames soube que a criança apresenta problemas sérios cerebrais e também na coluna cervical, o que impossibilita a vida extra-uterina. Diante desta constatação, gostaria de realizar o aborto. Tenho ciência das conseqüências que o aborto pode acarretar, mas mesmo assim estou decidida a praticá-lo, pois que seria mais doloroso ver a criança nascer nas condições em perspectiva. (...) Os médicos me asseguraram que a criança não vai ter sobrevivência após o nascimento." (fls. 30).

Seu companheiro, pai do feto, ouvido, consentiu e concordou com a pretensão da apelante (fls. 30/31), relatando o seguinte:

"(...) Sou companheiro de N. e nessa condição concordo com a pretensão da mesma. Conversamos bastante e chegamos à conclusão de realizar o aborto, pois pelo contrário ao invés de preparar-mos o enxoval, teríamos de preparar o caixão e o velório. Das possíveis conseqüências do aborto, tenho conhecimento que o mesmo possa dificultar futura gravidez. (...)"

O pedido veio instruído com o parecer psicológico de fls. 32, que dá conta da intensa angústia que acometeu o casal, quando souberam que o bebê que esperavam não sobreviveria ao nascimento, informando, ainda, que a apelante, com 32 anos, "é mãe de um casal de filhos adolescentes, de um casamento anterior, e sabe perfeitamente o que é a maternidade. Sabe quanto sofrimento ainda terão até o nascimento deste filho e que não haverá nenhuma chance em criá-lo, devido a má formação congênita", concluindo a expert, por fim, que "o casal apresenta lucidez e informação suficientes para uma decisão consciente e irrevogável quanto à interrupção desta gravidez".

Do ultra-som obstétrico de fls. 19, datado de 03 de março e assinado pelo Dr. Luiz Flávio de A Gonçalves, CRM 4613, constata-se que a apelante encontrava-se na 17ª semana de gravidez (17 semanas e 4 dias), quando submeteu-se ao exame, que concluiu que a criança gerada apresentava ‘anomalias fetais observadas ao presente ultra-som caracterizando-se por; 1) anencefalia; 2) extenso disrafismo da coluna tóraco-cervical (aberto); 3) retroflexão da cabeça fetal em relação ao tronco. Os achados são compatíveis com iniencefalia, anomalia esta incompatível com a sobrevida extra-uterina".

Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o verbete "anencefalia" significa: "1. Anomalia de desenvolvimento, que consiste em ausência de abóbada craniana estando os hemisférios cerebrais ausentes ou representados por massas pequenas que repousam na base. Monstruosidade consistente na falta de cérebro".

A autorização judicial para que o médico realize o abortamento tem sido deferida pelo Juízo Criminal, ‘como autêntica medida cautela criminal inominada", no dizer do Dr. Adauto Suannes, Desembargador aposentado e advogado em São Paulo ( in "Autorização para o abortamento" Boletim do IBCCrim n.°46, pág. 2), pois o Código Penal, em seu Art. 128, admite que, em casos especiais, a gravidez seja interrompida sem que tal ato seja punido.

De se salientar, nesse passo, que autorizar não significa obrigar a gestante a executar o abortamento, mas sim permitir, conferir licença, consentir que esta se submeta a uma interrupção da gravidez do feto inviável, pois o fato de provocar o aborto é considerado crime pela legislação penal vigente, com a fundamentação básica de que o objeto que a lei protege é o direito à vida do nascituro. De posse do alvará judicial, a apelante poderá ou não efetuar o aborto.

Evidente que diante da evolução da sociedade e das tecnologias, tornou-se imperativa a adaptação do ordenamento jurídico, especialmente das leis penais, codificadas em 1940, aos novos comportamentos, por isso, a nova parte geral do Código Penal brasileiro se encontra em fase de elaboração, inserindo-se, dentre dos muitos temas a ser examinados, o do aborto, conduta punível nos dias atuais, a teor dos Arts. 124 a 128 do referido estatuto, incluídos nos crimes contra a vida.

Nossa lei penal despenalizou apenas o aborto efetuado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, chamado aborto terapêutico ou necessário ou profilático, e aquele procedido com consentimento da gestante, ou de seu representante legal, no caso de gravidez resultante de estupro, conhecido como aborto sentimental ou por indicação ética - incisos I e II do Art. 128 do Código Penal.

O pedido da apelante, apesar de não se enquadrar rigorosamente nos dois casos previstos em lei, neles se enquadra por analogia e, diga-se, não é novidade no mundo jurídico.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminai, no seu Boletim N° 11, divulgou matéria, de autoria do Juiz de Direito Geral Francisco Pinho Franco, sob o título "Impossível a sobrevida do feto deve ser autorizado o aborto".

Já no Boletim seguinte, sobre o mesmo tema, foi publicada esta colaboração do médico Thomas Rafael Gallop, Professor de Genética Médica na Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana, intitulada "Ainda o aborto (legítimo) em razão da anomalia fetal", em que se esclareceu o seguinte:

"Sempre que se debate a questão do aborto no Brasil - como agora, na projetada reformulação do Código Penal -, a discussão tende a se polarizar entre os movimentos de mulheres, de um lado, reivindicando um direito reconhecido na maioria dos países, e correntes religiosas, sobretudo a Igreja Católica, de outro, jogando o peso de sua influência para impedi-lo. A partir de minha experiência no atendimento de mais de 3 mil casais, em exames pré-natais para diagnóstico de malformações fetais, gostaria de introduzir um ângulo novo na discussão: o de que o aborto no Brasil é uma questão de saúde pública e basta examiná-la do prisma da medicina fetal para verificar a legislação atual, ignorando a evolução do conhecimento científico e dos costumes sociais, pune injustamente as camadas mais pobres da população.

"Na área de minha especialidade, a ultra-sonografia e outros exames de alta precisão fornecem hoje dados muito seguros sobre a saúde do feto nos casos de risco, nos quais, dado um quadro adverso, o casal deveria ter o direito de escolher livremente pela continuação ou interrupção da gravidez. São casos de mulheres com primeira gravidez além dos 40 anos, de grávidas com histórico de doenças geneticamente determinadas na família ou antecedentes de filhos com algum tipo de má formação e de mulheres que tiveram infecções na gestação, principalmente rubéola e toxoplamose. São essas gestações de risco genético.

"Na maior parte dos casos, felizmente, os exames indicam que a saúde do feto é perfeitamente normal. Mas, excepcionalmente, pode-se detectar alguma anomalia e nossa posição nesses casos é que, como ocorre nos países desenvolvidos, seja permitida ao casal a opção de uma interrupção da gestação até 24 semanas. Isto, com atendimento médico e hospitalar adequado e sem que o médico, a paciente e sua família se vejam sob a ameaça de um Código Penal redigido e sancionado em 1940, com os valores da década dos 30, quando não havia nenhum meio de fazermos um diagnóstico preciso da saúde fetal.

"As mudanças nos costumes e na tecnologia, nestes 53 anos, formam a nossa convicção de que é necessária e urgente uma adequação desse código anacrônico ao progresso científico. Dificilmente se chegará a unanimidade dos pontos de vista com relação a essa questão, mas é importante destacar a mudança verificada nas últimas duas décadas.

"Recentemente levantamento comparativo feito pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia mostra que, em 1970, cerca de 35% dos médicos eram favoráveis a uma lei que permitisse a interrupção da gravidez por anomalia fetal. Hoje 90% dos obstetras pensam dessa forma. Houve uma evolução do pensamento médico, ditada por todo tipo de informação e pelos avanços tecnológicos, mas não acompanhado pela lei penal nem por setores influentes da sociedade.

No Brasil, ao contrário de países de primeiro mundo, onde o Estado assume o ônus do deficiente, a responsabilidade recai fundamentalmente sobre a família, porque o Estado brasileiro se omite duplamente: praticamente não existe informação dos riscos à disposição da população e é reduzidíssima a disponibilidade dos exames necessários ao diagnóstico precoce. O problema social se agrava porque justamente as famílias mais pobres com menos condição de arcar com o ônus do deficiente são também as que têm menos acesso tanto à informação quanto aos exames especializados, sem contar que a maior parte dos seguros médicos não assegura à família cobertura a criança que nasça com problema herdado ou congênito.

Do lado profissional, o médico enfrenta o problema de indicar um exame capaz de revelar um diagnóstico desfavorável diante do qual está de mãos atadas. A lei não lhe permite agir, caso a família opte pela interrupção da gravidez e a criança nascida com problema não receberá nenhum tipo de apoio para reabilitação ou adaptação à sociedade.

"De todos os lados a equação é perversa!

"O que nós temos observado é que em 95% dos casos, diante de uma anomalia fetal grave, a opção do casal é pela interrupção da gestação, ainda que ela não seja legal em nosso meio. O que chama a atenção é que isso independe do nível de instrução e formação religiosa do casal, e o argumento que ouço com freqüência, nesses casos, é o de que o bem-estar da família está acima do seu credo religioso e das pressões do Código Penal. Trata-se de uma questão de foro íntimo.

"Finalmente, gostaria de mencionar dois precedentes jurídicos da mais alta importância. Em dezembro de 1992, o Juiz Dr. Miguel Kfoury Neto, de Londrina, autorizou a interrupção de uma gestação na qual havia sido diagnosticado anencefalia. Em dezembro de 1993, entramos com ação em São Paulo e obtivemos do Juiz de Direito, Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco autorização para interromper gravidez de 23 semanas em feto portador de acrania. A nosso ver, são essas, demonstrações claras onde o avanço da ciência médica procurou e obteve apoio e sensibilidade da classe jurídica".

Na mesma direção é o entendimento do mestre Paulo José da Costa, em matéria intitulada "Aborto Eugênico ou Necessário", publicada na Revista Jurídica n.229, de novembro de 1996, pág.27 a 29 (citada aliás na petição inicial), de onde se infere que em razão da reforma do Código Penal, discute-se no Poder Legislativo, a ampliação do rol de excludentes de antijuridicidade no aborto, senão leia-se:

"Corrente oposta procura ampliar o rol de excludentes de antijuridicidade no aborto.
"Segundo tal posicionamento, além das duas excludentes já existentes, seria inserida a hipótese de aborto eugênico ou eugenésico. Trata-se do aborto piedoso, praticado quando o feto é portador de anomalia grave e irrecuperável."

Continuando, ressalta que:

"A Medicina, em sua contínua evolução, já permite identificar e diagnosticar, com precisão, anomalias do feto, durante a gestação. O diagnóstico de citadas anomalias é feito por meio da análise de células do feto, das células obtidas no líquido amniótico ou das células da placenta. As anomalias anatômicas do feto são diagnosticadas por ultra-sonografia.

Despontou em tal atividade o Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana São Paulo, dirigido pelo eminente Professor Thomas Rafael Gollop, da Universidade de São Paulo.

Recentemente, tivemos notícia, pelo referido Instituto, na pessoa do Prof. Gallop, que muitos alvarás tem sido concedidos pelo Poder Judiciário para realização de aborto, em casos de malformações graves de fetos, incompatíveis com a vida. Em outras palavras: mediante prova científica irrefutável, que conduz ao grau de certeza, o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida. (...)

"Segundo dados fornecidos pelo Instituto, foram requeridas duzentas e cinqüenta autorizações para realização do aborto eugênico, sendo que apenas seis pedidos foram indeferidos em todo o Brasil: dois no Rio de Janeiro, dois em Guarulhos e dois em Belo Horizonte.

"Na comarca de Campinas, entre julho de 1994 e novembro de 1995, todos os pedidos judiciais de autorização para realização de aborto, em caso de anomalia grave do feto, que conduzem à incompatibilidade com a vida, foram deferidos.
"A pesquisa revela que grande parte dos diagnósticos, nos casos em que o aborto foi autorizado, era de anencefalia, anomalia que inviabiliza por completo a vida extra-uterina do feto.

"Observe-se que o aborto, nessas situações, é aparentemente eugênico. Na realidade, o aborto é necessário.

"Fundamentam as aludidas decisões os seguintes argumentos, basicamente:
"1 - Não é qualquer anomalia do feto que dá ensejo à autorização judicial para o abortamento. Somente as anomalias do feto que inviabilizem sua vida extra-uterina poderão motivar tal autorização.

"2 - O diagnóstico de anomalia deverá ser inquestionável.

"3 - Ao lado da inviabilidade da vida extra-uterina do feto, deve ser considerado o dano psicológico para a gestante, decorrente de uma gravidez, cujo feto não apresenta sobrevida."

Concluindo, assevera:

"(...) Por que levar adiante uma gravidez cujo feto seguramente não sobreviverá? Por que impor um sofrimento psicológico tão intenso e inútil à gestante?

"Direito é bom senso. Direito é balanceamento de bens, cotejando-se, em cada situação os seus valores. Diante de um diagnóstico de anomalia do feto, que o incompatibiliza com a vida de modo definitivo, a melhor solução é o aborto." (Pág. 29).

Importante gizar que não se trata, aqui, de autorizar o abortamento de um feto com formação anormal ou defeituosa que o possibilitasse sobreviver após o nascimento, mesmo que monstruosamente, pois nossa legislação não tem admitido o aborto eugenésico ou eugênico ou patológico, isto é "aquele praticado face à possibilidade de vir o nascituro a portar deficiência física ou mental, por herança genética", pois "a aceitação de tal procedimento, dizem alguns, faria com que se retornasse aos tempos remotos da antiga Roma, onde jogavam-se dos penhascos as crianças nascidas com deformidades, sob o pretexto de que os nascidos sem ‘aparência humana’ não eram pessoas, não eram seres humanos" (Fabrício Zamprogna Matielo, ‘Aborto e Direito Penal’, Sagra-DC Luzzatto Editores, Porto Alegre, 1994, pág. 62/63), mas sim consentir que a gestante de um ser sem condição alguma de sobrevida após o parto possa interromper esta gravidez, como no caso, onde constatou-se que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina.

Não se diga da necessidade de realização de perícia oficial na hipótese, primeiramente em razão do caráter de urgência do pedido, pois os riscos para a realização do aborto pretendido aumentam a cada semana de gestação, segundo, porquanto qualquer leigo sabe que da impossibilidade de sobrevivência de um indivíduo sem cérebro, o que, repita-se, foi atestado pelo médico subscritor do laudo de fls. 19.

O conceituado Aníbal Bruno, tratando das "causas de exclusão da antijuridicidade no aborto", já nos idos de 1975, lembrou que:

"O direito reconhece, com função justificativa, situações que configuram um particular estado de necessidade, em que para salvar determinado bem jurídico se faz preciso sacrificar a vida do feto.

"Tem-se admitido certo número de indicações ou critérios em que se justifica a interrupção da gravidez - indicação médica, indicação ética ou emocional, indicação eugênica, indicação social ou econômica, indicação racista. E hoje a tendência que mais se manifesta, (...), é para aumentar o número de causas de exclusão da ilicitude do aborto." (Crimes contra a pessoa, 3 ª Ed. Ed. Rio, Rio de Janeiro, 1975, pág. 169/170).

Ora, se a lei penal permite o aborto de fetos normais, sem anomalia alguma, e por isso com condições de sobrevida e provavelmente de desenvolvimento físico e mental normais, no caso de gravidez resultante de estupro, "criou o legislador causa de justificação assemelhada ao estado de necessidade, para permitir o sacrifício do direito à vida do embrião ou feto em face do peso maior dado a outro bem jurídico - o direito da mulher à liberdade sexual. Tal permissão só se pode explicar por aquela consideração das repercussões negativas do nascimento indesejado, nada impedindo, assim, que corretamente com posição já manifestada pelo legislador, a licitude da realização do aborto se estenda a outros casos em que, por razões diversas, o nascimento se mostre igualmente indesejado" (Maria Lúcia Karam, ‘Sistema Penal e Direitos da Mulher’ Ed. RT São Paulo, 1995, vol. 09, pág. 160).

Pois bem, como apropriadamente resumiu o ilustre representante do Ministério Público nesta Instância, Dr. Pedro Sérgio Steil:

"Temos como fato concreto e incontroverso a anomalia do feto, que inviabiliza inarredavelmente a vida extra-uterina e que, por isso, provavelmente causará dano psicológico à gestante. Há, portanto, sob certo aspecto, evidência de risco à saúde da gestante, mormente à saúde mental, como resultante do drama emocional a que estará submetida se levar a gestação a termo.

"Por outro lado, a ponderável argumentação exposta na sentença recorrida, no sentido de que não se pode causar a morte do nascituro, protegido pelo artigo 4 ° do Código Civil, não nos parece adequada ao caso, uma vez que estamos tratando de aborto legal - excludente de antijuridicidade, segundo a qual não se pune a interrupção da gravidez, praticada por médico, mediante determinadas condições (Art. 128 do Código Penal) - que acarreta logicamente a morte do feto.

"(...)

"Além disso, embora não seja razão, por si só, para o acatamento do pleito recursal - mas é lembrada pelo bom senso - devemos ter em consideração o fato de que Brasil afora se fazem milhares de abortos clandestinos, flagrantemente ilegais, com riscos à saúde e vida de gestantes. Não nos parece razoável, diante deste quadro, que a solicitação de autorização para realização do aborto, instruída com farta evidência de recomendação médica e psicológica, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro, seja negada pelo Poder Judiciário.

"Por fim, embora não anotados tecnicamente, é conveniente considerar a existência de precedentes jurisprudenciais e a argumentação mencionada no artigo do ilustre professor Paulo José da Costa, no trecho transcrito pela autora na petição inicial."

Diante das circunstâncias especialíssimas que se fazem presentes, evidente que se deva fazer uma INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA EXCLUDENTE DE PUNIBILIDADE PREVISTA NO INCISO IO DO ART. 128 DO CP, aplicando-se, para tanto, OS PRINCÍPIOS DA ANALOGIA ADMITIDOS NO ART. 3° DO CPP.

No dizer de Júlio Fabrini Mirabete:

A analogia é uma forma de auto-integração da lei. Na lacuna involuntária desta, aplica-se ao fato não regulado expressamente um dispositivo que disciplina hipótese semelhante. No entender de Bettiol consiste na extensão de uma norma jurídica de um caso previsto a um caso não previsto com fundamento na semelhança entre os dois casos, porque o princípio informador da norma que deve ser estendida abraça em si também o caso não expressamente nem implicitamente previsto." (Processo Penal, Ed. Atlas, 4ª Ed., 1995, pág. 56).

3 - Por todo o exposto, conhece-se do recurso, dando-se-lhe provimento para, autorizar o abortamento requerido, determinando-se a expedição do alvará judicial para tanto.

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Alberto Costa, lavrando parecer o Exmo. Sr. Dr.,. Pedro Sérgio Steil.
Florianópolis, 05 de maio de 1998.
JOSÉ ROBERGE - PRESIDENTE COM VOTO

Jorge Mussi – Relator

Aborto e ação repressiva

1 milhão de abortos ilegais no país

Cristina (nome fictício), de 22 anos, chegou ao Hospital com fortes dores abdominais. Com quatro meses de gestação e sem condições financeiras para procurar uma clínica clandestina de aborto, tomou dois comprimidos de um remédio ilegal para forçar a interrupção da gravidez. Na média de 1 milhão de abortos por ano no país, ela é uma das 33 mulheres que em 2014 foram presas pelo crime, conforme levantamento do jornal  Estado em 22 unidades da Federação.
Parte das denúncias que condenaram as gestantes neste ano tem o mesmo endereço: os hospitais. A médica que realizou o atendimento da jovem paulistana, por exemplo, resolveu denunciá-la à polícia. "Fiquei algemada na cama por três dias", conta Cristina.
Em São Paulo, pelo menos sete das presas foram denunciadas por médicos. "Me senti um lixo em pessoa, com escolta até para ir ao banheiro. Estava apavorada", conta Cristina. Ela conta que, com o salário de balconista em uma loja no centro, não conseguiu pagar a fiança de R$ 2 mil. Após receber alta, foi encaminhada à Polícia Civil e liberada uma semana depois.
Levantamento da Defensoria Pública mostra que os profissionais da saúde desrespeitam o sigilo médico. Segundo o Código de Ética da Medicina, diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, o médico é proibido de comunicar o fato à polícia ou à Justiça.
A quebra do sigilo traz uma consequência grave: A gestante fica com receio de procurar um médico ou o próprio SUS temendo ser denunciada a polícia e assim perde um acompanhamento médico indispensável.
Advogados consideram que a denúncia à autoridade policial  por parte dos médicos é feita sem a apuração que os casos exigem. É preciso saber as circunstâncias do aborto, pedir exames e se certificar de que ele foi induzido e não espontâneo
As prisões por aborto ilegal no Brasil se concentram no Sudeste. O  Rio de Janeiro tem 15 presas, São Paulo, 12, e Minas Gerais, uma. As demais denúncias foram registradas no Paraná (3) e em Brasília (2). Maranhão, Acre, Tocantins, Rondônia e Roraima  não informaram o número de denúncias.

Amanda (nome fictício), de 18 anos, alega não ter passado por nenhum exame. Em março, ela estava em casa, na Vila Formosa, zona leste, quando sentiu fortes dores. Após três horas seguidas de contrações, abortou um feto de três meses. "Fiquei apavorada, não sabia que estava grávida. Tomava anticoncepcional todo mês", conta. Assustada, cortou o cordão umbilical com uma tesoura, enrolou o bebê em um saco plástico e o jogou no lixo. "Eu não sabia o que fazer."
Socorrida por vizinhos, deu entrada no Hospital. "O médico me atendeu, viu a placenta e me perguntou o que tinha acontecido. Contei que perdi o bebê e, uma hora depois, a polícia já estava no local." A PM encontrou o feto no lixo e prendeu a jovem em flagrante. Em seis dias de internação, nenhum exame que comprovasse o aborto induzido foi feito. "Me senti acusada injustamente por algo que não fiz."
FONTES:

Jornal Estado de São Paulo, em 21.12.14

Abortamento em massa


As montanhas de Buda


A prática do aborto tem ocorrido, também, como medida política para dominação de povos. Javier Moro é autor de esclarecedor livro sobra a ação da China na dominação do Tibete. A peregrinação mundial do Dalai Lama, líder religioso máximo do Tibete, é a face mais visível da tomada do território de um país pacífico, extremamente voltado à sua fé budista e costumes milenares.  O lado escuro é devassado em parte no livro As Montanhas de Buda, de sua autoria, editado entre nós pela Editora Planeta do Brasil, neste ano de 2010.

 Abaixo um pequeno trecho sobre a prática do abortamento em massa realizado como instrumento de dominação:


“Em 1993, havia [no Tibete] sete milhões e meio de chineses para sete milhões de tibetanos, uma invasão demográfica cada vez mais alarmante, Horda de chineses imigram para o país das neves seguindo as recomendações dos altos dignitários do Partido Comunista. Para que esqueçam seus preconceitos de que o Tibete é um deserto gelado povoado por selvagens eles recebem vários benefícios: três ou quatro vezes o salário que teriam na China, empréstimos sem juros, moradia garantida. Muitos benefícios lhes são concedidos, e até uma gratificação de risco por eventuais problemas respiratórios, devido ao fato de o Tibete ficar a quatro mil metros de altitude. Os imigrantes apropriam-se dos restaurantes que por tradição são comércios tibetanos, e ocupam as profissões de alfaiate, carpinteiro e pedreiro. O número de mendigos tibetanos aumenta a cada dia.

Esta invasão é acompanhada por um genocídio. Ninguém escapa as medidas desumanas de controle da natalidade, que foram reforçadas em 1989, depois que um relatório da Academia das Ciências Sociais de Xangai aconselhou a criação de uma força especial para realizar abortos sistemáticos em mulheres pertencentes a minorias nacionais cuja população seja superior a quinhentas mil pessoas.

Equipes sanitárias percorrem o país das neves para aplicar a lei, e benefícios econômicos são proporcionados àqueles que praticam o maior número de esterilizações e abortos. Presenciam-se cenas atrozes em que grupos de mulheres, e até adolescentes, são empurradas em caminhões que as levam a hospitais. Nas regiões mais afastadas, equipes de enfermeiras e médicos chineses circulam em jipes, seguidas por caminhões de material sanitário. Viajam por três a quatro meses, indo a todas as aldeias para procurar mulheres grávidas do terceiro ou quarto filho, às vezes até do segundo. Ao final de cada viagem eles tratam uma média de dois mil casos. 

Relatórios que denunciam abortos forçados em mulheres de gravidez bastante avançada foram confirmados com a descoberta de fetos de quatro ou cinco meses em lixeiras do hospital de Chamado. Chegaram até a exterminar recém-nascidos em famílias que já tinham dois filhos. Ao dar à luz a mãe ouve o grito do bebê e depois é informada de que ele morreu durante o parto.  

Uma médica tibetana atestou mais tarde que bebês saudáveis e bem formados, foram afogados em baldes de água ao nascer. E acrescentou: “As mães enlouquecem.” Um médico chinês, interrogado por uma comissão de inquérito sobre direitos humanos, reconheceu que fora obrigado a matar recém-nascidos para alcançar sua meta de abortos. Se não o tivesse feito, teria perdido os benefícios econômicos vinculados À sua atividade e sido demitido.


Para os tibetanos, que vivem a fé budista de forma intensa, por fim a qualquer forma de vida é uma terrível transgressão, e o controle da natalidade, um verdadeiro traumatismo, cujos efeitos são devastadores.”

                                  Mulheres tibetanas em dia de festa 


Dalai Lama



                            Foto Fonte www.pinterest.com/pin/122793527312841289/


“Esta é minha religião. Não são necessários templos ou uma filosofia complicada. Nosso cérebro e nosso coração são o nosso templo e a filosofia é a gentileza.” Dalai Lama

Aborto e vida



"Até meados do século 19, a igreja considerou, explícita e oficialmente, que o embrião não se torna um ser vivo até o 40º dia após a concepção - 80º, no caso das meninas - e que, portanto, o aborto apenas é homicídio a partir desse momento.

É o que diz Tomás de Aquino [por volta dos anos 1225-74], o teólogo de maior autoridade na Igreja Católica, e é o que repetem Sixto 5º e Gregório 14. O Catecismo romano ensina o mesmo catecismo de Pio 4º e Pio 5º. A Igreja Católica mudou de opinião, não  por razões teológicas, mas, como diz Bento 16, em razão do que ela acredita que a ciência moderna afirma."


Do ponto de vista da lei brasileira Homicídio e Aborto são crimes distintos. Homicídio é matar alguém, enquanto aborto é um crime contra a expectativa de direito a vida do feto.


Isto é:

(1) o feto não tem vida, mas tem uma expectativa de ter vida em algum momento (ao final da gravidez). Até que ele nasça com vida, ele não pode ser vitima de homicídio, pois apenas alguém que tem vida pode ser vítima de homicídio, e para a lei brasileira o feto não é alguém ainda.

(2) Para o direito brasileiro, a vida começa quando, após o nascimento, a criança inala pela primeira vez. Apenas a partir deste momento ele passa a ter vida e, portanto, pode ser vítima de homicídio. Até então, ele é feto e tem apenas a expectativa de, em algum momento futuro, ter vida.


É essa expectativa de uma vida futura que a lei visa proteger através da proibição do aborto.


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Gustav Klint - Mãe e dois filhos






PODER JUDICIÁRIO
Vara Privativa do Júri
Comarca de Jaboatão dos Guararapes
Pernambuco

Processo nº 222.2005.000029-0
Autor: ANDRÉ RODRIGO SALGADO e outro
ALVARÁ PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ

SENTENÇA


ALVARÁ. Interrupção de gravidez. ANENCEFALIA.
COMPETÊNCIA. Vara Privativa do Júri.
Ausência da vida de relação e vida vegetativa
RISCO PARA A GESTANTE. Preservação da saúde .física e psicológica da mãe.
ANALOGIA. Inteligência do artigo 128, inciso II, do Código Penal.
CONCESSÃO DO ALVARÁ.


“That when the brains were out, the man would die”.
Shakespeare (Macbeth, Act3, Scene4)

Vistos, etc.

EMMANOELLY ALICE BARRETO GOUVEIA e ANDRÉ RODRIGO SALGADO, através de advogada legalmente constituída, adentraram com pedido de ALVARÁ JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ sob a alegação de que, em reiterados exames ultrassonográficos, foi constatada a anencefalia do feto.

Ainda na inicial, ponderaram os requerentes que “o problema constatado é totalmente incompatível com a sobrevida extra-uterina”.

Á inicial foram juntados laudo médico (fls.08); ultrassonografias obstétricas, acompanhadas das imagens radiológicas (fls.9 a 12); cópias da decisão liminar do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Melo (fls.13 a 17); certidão de nascimento da primeira filha dos requerentes (fls.18) e documentos de identidade dos requerentes (fls.19 e 20).

Às fls.24 e 25 ainda foram acostados dois laudos médicos atestando a anencefalia do feto e os riscos, para a gestante, em decorrência da gestação.

Instado a se pronunciar, o Ministério Público, em brilhante parecer, posicionou-se favoravelmente á concessão do alvará.
Vieram-me os autos conclusos.
É O RELATÓRIO. DECIDO.
Trata-se de requerimento de autorização judicial para interrupção de gestação de feto diagnosticado como anencéfalo.

DA COMPETÊNCIA


Primordialmente, há que se tratar da questão da competência para julgar pleitos dessa ordem, qual seja, autorização para abortamento.

O aborto, como figura, em tese, penalmente, tipificada entre os crimes dolosos contra a vida tem seu processo e julgamento, constitucionalmente, apontado como sendo da competência do júri popular.

No caso em apreciação, na verdade, está sendo solicitado um reconhecimento antecipado de uma causa excludente da antijuridicidade de um fato descrito como crime doloso contra a vida.

Ora, se a competência para processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida é da vara privativa do júri, há que se entender, em simples ilação lógica, que o reconhecimento de uma causa de exclusão da ilicitude de uma figura penal dessa natureza, também deve ser julgado pela vara privativa do júri.

No entanto, a competência, como medida da jurisdição, tem sua limitação em razão da matéria e em razão do lugar. Falo da limitação da competência em razão do lugar, posto que, caso um aborto venha a ser cometido em Jaboatão dos Guararapes, a competência será deste juízo, mas, se o aborto for praticado em outra comarca e, assim, em outra unidade judiciária, a competência para processar e julgar o crime de aborto será dessa e não daquele juízo.
O mesmo raciocínio deve ser aplicado ao caso do reconhecimento antecipado de uma causa excludente da antijuridicidade?

A matéria é sui generis e polêmica em todos os âmbitos de análise.

Bem, no caso de um crime de aborto, onde o local do delito pode ser definido, aplica-se a regra geral do artigo 70, “caput”, do Código de Processo Penal. Mas, não sendo possível conhecer o local da infração, deve-se lançar mão do dispositivo subsidiário descrito no artigo 72, do CPP,  e a competência será fixada pelo domicílio ou residência do réu.
Assim, no caso sob comento, sendo os requerentes residentes nesta comarca, e não sendo possível definir, previamente, o local onde será realizado o abortamento, levando em consideração as eventuais complicações e conveniências médicas, este juízo é o competente para processo e julgamento de qualquer questão afeita ao fato ora em análise.

Estamos falando apenas em percorrer o caminho inverso ao, naturalmente, percorrido para a fixação da competência.

DO MÉRITO


A prova carreada com a inicial demonstra, inequivocamente, que a requerente está gestante de um feto anencéfalo.

Anencefalia segundo o Dr.José Aristodemo Pinotti, Deputado Federal. Professor Titular de Ginecologia da USP é a seguinte:

”A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. As evidências têm demonstrado que a diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí sua maior freqüência nos níveis socioeconômicos menos favorecidos. O Brasil é um país com incidência alta, cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, a maioria deles do sexo feminino.

O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese.

A maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado.”.

O conceito trazido suso esclarece que o feto anencéfalo não possui cérebro viável e o tronco cerebral é deformado, de forma que, vindo a “nascer”, não terá chance de sobreviver, senão por algum tempo não considerável. A ausência do cérebro impede a ocorrência da vida de relação, ou seja, não há sentimentos, sensações, os sentidos ficam completamente comprometidos e os movimentos existirão apenas em razão dos reflexos medulares; e a deformidade do tronco impede até a viabilidade da vida vegetativa.
Na acepção médica, há uma morte, já que a morte encefálica é considerada morte de forma a autorizar a doação de órgãos. No caso da anencéfalia, não há apenas a morte do encéfalo, mas, a ausência do encéfalo.
Importante registrar que o feto anencéfalo, apesar da ausência do encéfalo e até, neste caso, da ausência das estruturas ósseas do crânio, apresenta, intra-últero, vitalidade dos demais órgão, que recebem nutrientes e oxigênio através do cordão umbilical, não sendo razoável falar em possibilidade de vida, sequer vegetativa, fora do útero.

A gestação do anencéfalo é, totalmente inócua, do ponto de vista da sobrevida do feto.

Vide trecho do atestado médico de fls.24.

“Do ponto de vista clínico e obstétrico há evidências científicas claras de que a manutenção da gestação aumenta risco de morbi-mortalidade materna, e que a letalidade peri-natal é de 100%.”

No caso em apreciação, não há dúvidas de que, vindo a gestação á termo, não há a mínima condição de sobrevida do feto. Por outra banda, a possibilidade de erro de diagnóstico da anencefalia, neste caso, é, praticamente, nula, face a reiteração dos exames e unidade de diagnósticos.

Portanto, não há questionamento médico quanto ao conceito e expectativa nula de vida do anencéfalo.

Superados os argumentos clínicos, ainda subsistem as argumentações sociais e afeitas aos direitos humanos envolvidos.

Antes de tecer qualquer comentário filosófico acerca do abortamento em caso de anencefalia, convém colacionar que todas as argumentações desse âmbito encontram supedâneo no conceito de vida.

Para a ciência, como outrora discutido, entende-se em morte quando ocorre a morte do encéfalo; no caso do anencéfalo, há a ausência de encéfalo.

Argumenta-se que o abortamento de um anencéfalo configuraria um desrespeito a vida humana, além de privar o feto de receber o carinho das pessoas que o amam enquanto sobreviver.

Embora haja um aceitável romantismo, entendo não ser prudente, neste momento, arroubos de sentimentalismo extremo, já que o anencéfalo não possui as estrututuras cerebrais capazes de o fazer se relacionar de qualquer forma, não há sentimentos e não há sentidos.

Tal romantismo, sentimentalismo, nada mais é que um reflexo da constante relutância humana em reconhecer suas limitações. Seria humilde até, entender que nossa condição físico-humana é frágil e que nosso invólucro é falível, podendo nos tornar, em um curto e inexplicável momento genético, quase “um nada”.

Quando falo em “um nada”, refiro-me a impossibilidade inerente a todo ser humano de ser reconhecido como vivo, estando ausentes partes insubstituíveis de nosso corpo.

Do ponto de vista prático, não há vida no anencéfalo, e, se não há vida, não há que se falar em preservação desse direito.

Embora o foco da questão esteja no feto, não é humano olvidar da condição da mulher em uma gestação como essa. Não é justo retirar-lhe o direito de se resguardar de um trauma, impondo-lhe o dever de levar a termo uma gestação que terá como fim, inevitável, a morte do neonato.

Acredito que, até mesmo os mais românticos, hão de concordar que, se o abortamento pode privar o feto de receber o carinho dos pais, também pode priva-lo de receber as angústias e rejeições que podem advir de uma gestação frustrante.

Não seria razoável impor o abortamento a todas as gestantes de fetos anencéfalos, algumas delas preferem ver a face, nem que seja por poucos instantes, de um filho gerado em seu ventre; no entanto, seria igualmente, inaceitável condenar uma gestante, inconformada, a aguardar a morte por nove meses, mormente, quando essa morte poder ser só do filho, mas pode ser, também, dela, mãe.

Vide atestado médico de fls.25.

“O defeito aberto do tubo neural impinge á grávida, além de traumas psíquicos, um incremento do risco de morte por:

a) Cursar com Polidramnia (volume excessivo do líquido aminiótico), em mais de 60% dos casos. A superdistensão da cavidade uterina é fator de risco para:

1)    Amniorrexe Prematura (reptura das membranas do saco gestacional) que favorece infecção uterina.

2)    Ocorrer Gravidez Serotina  (que ultrapassa o termo normal de gestação, gravidez pós-termo) e Posições fetais anômalas que são indicativas de cesarianas que por si só aumentam a morbidade e mortalidade materna.

3)    Atonia Uterina pós parto (normal ou Cesariano) Falta de contração do útero após o parto com graves hemorragias intrauterinas e graves distúrbios de coagulação materna.

4)    Descolamento prematuro da placenta normalmente inserida com graves hemorragias intrauterinas e graves distúrbios de coagulação materna.

b) Desenvolver Pré-Eclampsia (hipertensão arterial, disfunção renal, hepática e dos mecanismos de coagulação) e complicar com Eclampsia, que é a forma mais grave em que ocorre convulsões por comprometimento cerebral.”

Entendo que não é razoável arriscar a vida da mãe em prol do feto, cuja expectativa de vida não supera dias. Se há um direito á vida para ser preservado, esse direito é o da vida materna.

ACEPÇÃO JURÍDICO-FILOSÓFICA


Como bem lembra JUAREZ TAVARES, em precioso artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais,“...a norma incriminadora não é um ente meramente abstrato e neutro, como pensava Kelsen, como forma exclusiva de imposição de deveres para a satisfação da própria ação de sancionar, mas o sucesso da interação dos interesses que se manifestam no processo de sua elaboração” (São Paulo, Revista dos Tribunais, número especial de lançamento, p.75). Desconsiderar esse aspecto material da formação da norma é condenar a formulação jurídica a um jogo de mero exercício lógico, sem qualquer validade para as necessidades sociais de seus reais destinatários. Mais grave ainda torna-se o apego excessivo á letra fria da lei, sem qualquer investigação  ontológico-material, quando se observa a falta de uma legitimidade  plena e concreta nos procedimentos  para a sua criação.

Diante disso, ao jurista importa primacialmente encontrar critérios de garantia individual diante da intervenção punitiva estatal. Os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e o justo emprego das normas  penais, não se podendo cogitar de uma aplicação meramente robotizada dos tipos incriminadores, ditada pela verificação rudimentar da adequação típica formal, descurando-se de qualquer apreciação ontológica do injusto. Dentre esses princípios contendores da pretensão punitiva, destaca-se o da dignidade humana. Nenhuma previsão legal de infração penal pode sobreviver ao controle vertical de constitucionalidade se o conteúdo da disposição for claramente atentatório ao princípio da dignidade humana.

Atento às diretrizes filosóficas esposadas, o legislador, no artigo 128, inciso I e II do código Penal previu duas causas que excluem a ilicitude no caso do aborto:

ABORTO NECESSÁRIO

I-             se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

ABORTO NO CASO DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO

II-            se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
III-           
A primeira causa prevista visa preservar a integridade física, a vida da mãe; a segunda hipótese tem cunho de preservação, eminentemente, da integridade psicológica da mãe, resguardando-a de uma gestação cuja origem foi indesejada, minorando-lhe um trauma já presente, decorrente do próprio ato do estupro.

Lançando mão de igual raciocínio, pode-se entender como causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, o aborto em razão da constatada anencefalia do feto. A denominação, inclusive, poderia ser, também, aborto sentimental ou humanitário, visto ter  o intuito similar de preservar a integridade psicológica da mãe, e até como um ato de humanidade, em resguardar a gestante dos exaustivos meses de espera pela morte do filho.

A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 4º, diz que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

O ordenamento jurídico brasileiro não vislumbrou  a hipótese do aborto em razão da anencefalia do feto, mas regulou fato similar, o caso do aborto sentimental ou humanitário.

A analogia não é fonte formal mediata do direito penal, mas método pela qual se aplica a fonte formal imediata, isto é, a lei do caso semelhante. Ainda em inteligência ao artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, na lacuna do ordenamento jurídico, aplica-se em primeiro lugar outra lei (a do caso análogo), por meio da atividade conhecida como analogia; não existindo lei de caso parecido, recorre-se  então ás fontes formais mediatas, que são os costumes e os princípios gerais do direito, princípios esses que se fundam em premissas éticas extraídas do material legislativo.

CONCLUSÃO


É de minha formação, conceituar o juiz como um ente despido, desnudo de preconceitos e pré-conceitos. Não é permitido ao julgador analisar, qualificar e quantificar diferenças concernentes á raça, ao credo religioso, opção sexual; de outra maneira, não lhe é recomendável vincular seu convencimento aos seus íntimos conceitos de vida, de maneira a permitir, de uma forma genérica, independente do caso concreto, um prévio e previsível julgamento.

Nas mãos, corpo e mente do julgador devem convergir, em busca do seu silogismo, apenas as duas premissas: a lei e o fato, nunca se devendo permitir influenciar por sopros de sentimentalismo, nem inspirações de ordem política, sua sensibilidade deve apenas trilhar o caminho, único, estreito, mas, bem definido, da justiça.

Nessa ordem de idéias, lançando mão, por analogia, á norma insculpida no artigo 128, inciso II, do Código Penal, CONCEDO O ALVARÁ PARA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO da Sra. Emmanoelly Alice Barreto Gouveia, na forma pleiteada, autorizando a intervenção médica. Por oportuno, em atendimento à promoção Ministerial, determino que o profissional responsável pelo procedimento, remeta a este juízo relatório circunstanciado acerca da intervenção, no prazo máximo de 10 (dez) dias após a sua conclusão.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Jaboatão dos Guararapes, 11 de janeiro de 2005.


a) Andréa Rose Borges Cartaxo - Juíza de Direito