A matéria a seguir traduz uma das muitas inquietações presentes na mente
dos operadores do Direito. Sua leitura pelos estudantes ou profissionais deve ser
realizada com o necessário espírito crítico próprio da profissão. Há muito que
se aprender com o texto.
Conforme
é cediço por todos, o feto anencefálico é aquele que é privado de encéfalo,
sendo, portanto, destituído de atividade cerebral e goza de vida (vegetativa)
intra-uterina que o permite, em raras vezes, evoluir, chegar a termo e nascer,
embora, após pouco tempo, venha, fatalmente, a morrer clinicamente, o que se dá
com a completa e irreversível parada cardiorrespiratória.
Uma vez
ciente das condições e possibilidades de sobrevivência de um feto anencefálico,
faz-se mister analisar quais as consequências de uma gestação, nestas
condições, para a genitora, levando-se em conta os fatores físicos e
emocionais. De modo sucinto, pode-se dizer que a gestação é um processo
modificador do corpo feminino, seja no âmbito biológico ou psíquico. Assim,
ainda que se dê nas condições ditas "normais", já exerce
significativa influência nas condições de vida da mulher e, de modo indireto,
implica em modificações psíquicas para o genitor.
Em se
tratando de feto anencefálico, os danos psíquicos são de grande relevância,
tendo em vista o sentimento de perda que permeia toda a vida da gestante, bem
como a sua família, seja ela biológica ou afetiva. Os danos causados por uma
gestação deste tipo podem ser irreversíveis, frente aos distúrbios psicológicos
que pode sofrer a genitora frente à tamanha perda. Mas não é o bastante
analisar o aborto apenas do ponto de vista biológico e psíquico, mas também do
ponto de vista jurídico. O que fazer o operador do direito diante de um pedido
de autorização para realização de aborto do feto anencefálico, frente ao
ordenamento jurídico que tipifica o aborto no seu Código Penal, impondo-lhe
severa pena?
Ora, o
ordenamento jurídico pátrio, por se tratar de um estado democrático de direito,
fundamenta-se, de acordo com a Constituição Federal de 1988, no princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Deste modo, por se tratar de fato não previsto pela
legislação, contudo, fruto da sociedade da qual emana e deve sempre emanar o
direito, tal pedido deve ser analisado sob o prisma do trinômio
fato-valor-norma. Assim, deve ser levado em conta não apenas a norma, mas
também o valor maior da nossa legislação, que é a dignidade da pessoa humana, e,
ainda, que a gestação de um feto anencefálico é um fato que repercute de modo
direto e decisivo na vida de um ser humano igualmente dotado de valores e
crenças.
A cada
ser é dado o livre arbítrio, logo tem este o direito de ver a vida e
interpretá-la a partir das suas crenças e experiências. Desta forma, não cabe
ao operador do direito julgar os valores e crenças de cada ser, mas fazer a
subsunção das normas aos fatos invocando os princípios fundamentais do
ordenamento jurídico, tais como a Dignidade da Pessoa Humana e a Isonomia.
Com isto,
é indispensável que se considere o quão é relativo o conceito de dignidade que
varia de acordo com os princípios e valores individuais de cada ser e que
respaldado pela Isonomia deve ser tratado com relevante variação, uma vez que a
isonomia nada mais é do que tratar igualmente os iguais e tratar desigualmente
os desiguais na medida das suas desigualdades.
Com
base nestes princípios, conclui-se que não cabe ao operador do direito, neste
caso, invocar os seus valores e crenças pessoais ao julgar tal mérito, mas sim
considerar e respeitar os valores e princípios da impetrante, bem como a sua
livre manifestação de vontade. Assim, o aborto anencefálico deve ser regulado
pelo ordenamento jurídico pátrio, fazendo parte do rol das exceções penalmente
prevista no Código Penal vigente. Adestarte, uma vez considerando que deve ser
respeitada a livre manifestação de vontade da impetrante, todo e qualquer
pedido que verse sobre esta matéria deve ser deferido pelo magistrado, haja
vista que ninguém melhor do que a própria genitora para saber se tem, ou não,
condições físicas e emocionais para suportar uma gestação nestas condições,
tamanho é o sofrimento físico e psíquico que lhe é imposto.
Autora:
Thais Elislaglei Pereira Silva da Paixão
Fonte: http://jornal.jurid.com.br/materias/doutrina-penal/aborto-anencefalia-uma-questao-valores-crencas/
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