http://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/171813462/feminicidio-o-que-nao-tem-nome-nao-existe?utm_campaign=newsletter-daily_20150306_834&utm_medium=email&utm_source=newsletter
O que não tem nome não existe
Alice
Bianchini, Fernanda Marinela e Pedro Paulo de Medeiros.
O
Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em 03.03.2015, o Projeto de Lei
8305/14, do Senado, que inclui o feminicídio como homicídio qualificado,
classificando-o ainda como hediondo. [...]
A
criminalização do feminicídio tem provocado um intenso debate entre os
estudiosos das questões de gênero (sociólogos, psicólogos, juristas etc.),
alguns justificando a necessidade de criminalização da conduta e outros
entendendo que ela já se encontra contemplada nos tipos penais existentes na
legislação brasileira (homicídio qualificado, sequestro, vilipêndio de cadáver
etc.).
Independentemente
da posição por se criminalizar especificamente ou não o feminicídio, há
consenso em relação à gravidade do problema e à necessidade de explicitá-lo, de torná-lo visível, para que seja conhecido e compreendido e, a partir daí, seja intensificada a sua prevenção. Isso, contudo, pede sensibilidade e mobilização
social.
A tarefa é por demais complexa para o Judiciário, que terá uma margem
muito limitada de ação, já que a sua atuação é condicionada à existência do
fato, ou seja, do crime. Não se pode esquecer que quando o Judiciário é chamado
a atuar o bem jurídico já foi lesado. Às medidas preventivas, portanto, é que
devemos dedicar a maior parte de nossa atenção.
[...]
No
contexto da violência contra a mulher é que se insere a análise acerca da
conveniência da criminalização do feminicídio. Tal discussão é fundamental no
campo político, social e jurídico.
Ainda que não haja acordo sobre a
criminalização do feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das
suas características: a morte das mulheres pelo fato de ser mulher é produto
das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão que se
manifestam generalizadamente em contextos de violência sexista contra as
mulheres. Trata-se de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de
mulheres, com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais.
Não
obstante o reconhecimento do problema, bem como da necessidade de se criarem
instrumentos para seu controle, estudiosos divergem acerca da criminalização
específica, sendo que um dos principais argumentos daqueles que se posicionam
de forma contrária é exatamente a proteção já realizada por meio de tipos
penais neutros, citando o homicídio qualificado, o sequestro, as lesões, o
estupro, a vilipendiação de cadáver etc.
Os
simpatizantes da criminalização gênero-específica, por sua vez, alegam que não
são suficientes os tipos penais neutros, pois o fenômeno da violência contra a
mulher permanece oculto onde subsistem pautas culturais patriarcais, machistas
ou religiosas muito enraizadas e que favorecem a impunidade, deixando as
vitimas em situação de desproteção.
Ou seja, corre-se o risco de sentença ser
alcançada por tais concepções de mundo, o que reforçaria a invisibilidade do
fenômeno e impediria que se fizesse justiça ao caso concreto, já que a maior
carga de desvalor do fato (feminicídio) não estaria sendo levada em
consideração. E não se propõe punir mais, mas em fazê-lo de acordo com a
gravidade do fato.
Além da
discussão acima, outros argumentos são trazidos pelos que defendem a
criminalização do feminicídio. Vejamos:
(a)
Instrumento de denúncia e visualização dos assassinatos de mulheres por razão
de gênero;
(b)
Utilidade criminológica: dados e números concretos, fazendo aflorar a realidade
e permitindo uma melhor prevenção;
(c) Poder
simbólico do direito penal para conscientizar a sociedade sobre a gravidade
singular desses crimes;
(d) Novas
figuras penais podem contribuir a que o Estado responda mais adequadamente ante
esses crimes;
(e)
Compromete as autoridades públicas na prevenção e sanção dos homicídios de
mulheres;
(f) Não
se trata de dar um tratamento vantajoso para as mulheres à custa dos homens,
senão de se conceder uma tutela reforçada a um grupo da população cuja vida,
integridade física e moral, dignidade, bens e liberdade encontram-se expostas a
uma ameaça específica e especialmente intensa.
(g)
Princípio da proibição da proteção deficiente;
(h) O
Comitê CEDAW vem apoiando as leis de tipificação do feminicídio desde 2006
(Comitê CEDAW, 2006, 2012);
(i)
Existe extremo interesse constitucional e do legislador em erradicar as
práticas de violência contra a mulher
(j) Em
razão do princípio da igualdade e da obrigação do Estado de garantir os
direitos humanos, é necessário tratar juridicamente de maneira distinta
situações que afetam de maneira diferente a cidadania.
(k) O
legislativo deve determinar a pertinência, oportunidade e conveniência, em
termos de política criminal, da tipificação das condutas, sendo que existem,
tanto no Direito Internacional dos Direitos Humanos, como no Direito
Constitucional de diversos países, elementos suficientes para justificar a
adoção de normas penais gênero-específicas em matéria de violência contra as
mulheres.
Os
argumentos contrários, por outro lado, são eloquentes, mas, em nossa opinião,
insuficientes para afastar a necessária, adequada e urgente criminalização do
feminicídio. Apesar disso, não se os deve perdê-los de vista, já que servem de
alerta para que a preocupação que carregam não venha a se concretizar. Vejam-se
os principais argumentos:
(a)
Discriminação em prejuízo dos homens, dando maior valor a vida das mulheres;
(b)
Violação do principio básico de direito penal liberal, caracterizado pela
igualdade;
(c)
Ambivalência de um conceito cuja força reivindicativa parece diluir-se
convertendo-se de um processo de transformação de categoria teórico-política em
figura de direito positivo;
(d) O
poder político se vale dessa categoria, incluindo-a em sua legislação e, com
isso, isenta-se de investir recursos humanos e econômicos suficientes para
efetivamente conter a violência.
(e) Em
muitos países, a tipificação tem sido tão confusa que dificilmente se a pode
aplicar
(f)
Reforça a imagem estereotipada das mulheres como vítimas e, em consequência,
reduz ainda mais no imaginário social o empoderamento das mulheres;
(g) A
ênfase deve ser nas políticas preventivas e não nas penais;
(h) O
recurso ao direito penal transformou-se em um instrumento ao alcance de
qualquer grupo político e possui baixo custo, comparado com a implementação de
políticas públicas, e alta popularidade, especialmente em situações de alta violência
e criminalidade;
(i) O
direito penal não é uma via adequada para fazer frente a esse fenômeno, sendo
que a tipificação do feminicídio tem um impacto mais midiático que real, posto
que a proteção das mulheres não se incrementa por esta via, criticando-se a
ênfase unicamente penal da normativa e a falta de medidas que fortaleçam a
prevenção, tratamento e proteção das mulheres.
[...]
É aqui
que entra em cena a discussão acerca da função do direito penal. Apesar das
divergências, grande parte da doutrina penal é acorde em estabelecer, dentre
outras, a função de proteção de bens jurídicos. Nessa perspectiva, ainda que a
resposta penal seja insuficiente como resposta do Estado frente à violência
contra as mulheres, é uma resposta imperativa, dada a gravidade do atentado a
um bem jurídico fundamental.
Referências
bibliográficas
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: lei 11.340/2006: aspectos assistenciais,
protetivos e criminais da violência de gênero.
BODELÓN,
Encarna. Violencia de género y as respuestas de los sistemas penales. Buenos
Aires: Didot, 2013.
MARIÑO,
Fernando M. (Org). Feminicidio: el fin de la impunidad. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2013.
TOLEDO
VÁSQUEZ, Patsili. Buenos Aires: Didot, 2014.
Alice
Bianchini - Comissão da Mulher Advogada do
Conselho Federal da OAB, Portal Atualidades do Direito.
Fernanda
Marinela - Presidente da Comissão da
Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB.
Pedro
Paulo de Medeiros - Presidente da Comissão de
Direito Penal do Conselho Federal da OAB.
FONTE:
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