PODER JUDICIÁRIO
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Vara Privativa do Júri
Comarca de Jaboatão dos Guararapes
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Pernambuco
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Processo nº
222.2005.000029-0
Autor:
ANDRÉ RODRIGO SALGADO e outro
ALVARÁ PARA
INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ
SENTENÇA
ALVARÁ. Interrupção de gravidez. ANENCEFALIA.
COMPETÊNCIA. Vara Privativa do Júri.
Ausência da vida de relação e vida vegetativa
RISCO PARA A GESTANTE. Preservação da saúde .física e psicológica da
mãe.
ANALOGIA. Inteligência do artigo 128, inciso II, do Código Penal.
CONCESSÃO DO ALVARÁ.
“That when the
brains were out, the man would die”.
Shakespeare (Macbeth, Act3,
Scene4)
Vistos,
etc.
EMMANOELLY ALICE BARRETO GOUVEIA e ANDRÉ RODRIGO
SALGADO, através de advogada legalmente constituída, adentraram com pedido de
ALVARÁ JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ sob a alegação de que, em
reiterados exames ultrassonográficos, foi constatada a anencefalia do feto.
Ainda na inicial, ponderaram os requerentes que “o
problema constatado é totalmente incompatível com a sobrevida extra-uterina”.
Á inicial foram juntados laudo médico (fls.08);
ultrassonografias obstétricas, acompanhadas das imagens radiológicas (fls.9 a
12); cópias da decisão liminar do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Melo
(fls.13 a 17); certidão de nascimento da primeira filha dos requerentes
(fls.18) e documentos de identidade dos requerentes (fls.19 e 20).
Às fls.24 e 25 ainda foram acostados dois laudos
médicos atestando a anencefalia do feto e os riscos, para a gestante, em
decorrência da gestação.
Instado a se pronunciar, o Ministério Público, em
brilhante parecer, posicionou-se favoravelmente á concessão do alvará.
Vieram-me os autos conclusos.
É O RELATÓRIO. DECIDO.
Trata-se de requerimento de autorização judicial
para interrupção de gestação de feto diagnosticado como anencéfalo.
DA COMPETÊNCIA
Primordialmente, há que se tratar da questão da
competência para julgar pleitos dessa ordem, qual seja, autorização para
abortamento.
O aborto, como figura, em tese, penalmente,
tipificada entre os crimes dolosos contra a vida tem seu processo e julgamento,
constitucionalmente, apontado como sendo da competência do júri popular.
No caso em apreciação, na verdade, está sendo
solicitado um reconhecimento antecipado de uma causa excludente da
antijuridicidade de um fato descrito como crime doloso contra a vida.
Ora, se a competência para processo e julgamento
dos crimes dolosos contra a vida é da vara privativa do júri, há que se
entender, em simples ilação lógica, que o reconhecimento de uma causa de
exclusão da ilicitude de uma figura penal dessa natureza, também deve ser
julgado pela vara privativa do júri.
No entanto, a competência, como medida da
jurisdição, tem sua limitação em razão da matéria e em razão do lugar. Falo da
limitação da competência em razão do lugar, posto que, caso um aborto venha a
ser cometido em Jaboatão dos Guararapes, a competência será deste juízo, mas,
se o aborto for praticado em outra comarca e, assim, em outra unidade judiciária,
a competência para processar e julgar o crime de aborto será dessa e não
daquele juízo.
O mesmo raciocínio deve ser aplicado ao caso do
reconhecimento antecipado de uma causa excludente da antijuridicidade?
A matéria é sui generis e polêmica em todos os
âmbitos de análise.
Bem, no caso de um crime de aborto, onde o local do
delito pode ser definido, aplica-se a regra geral do artigo 70, “caput”, do
Código de Processo Penal. Mas, não sendo possível conhecer o local da infração,
deve-se lançar mão do dispositivo subsidiário descrito no artigo 72, do
CPP, e a competência será fixada pelo
domicílio ou residência do réu.
Assim, no caso sob comento, sendo os requerentes
residentes nesta comarca, e não sendo possível definir, previamente, o local
onde será realizado o abortamento, levando em consideração as eventuais
complicações e conveniências médicas, este juízo é o competente para processo e
julgamento de qualquer questão afeita ao fato ora em análise.
Estamos falando apenas em percorrer o caminho
inverso ao, naturalmente, percorrido para a fixação da competência.
DO MÉRITO
A prova carreada com a inicial demonstra,
inequivocamente, que a requerente está gestante de um feto anencéfalo.
Anencefalia segundo o Dr.José Aristodemo Pinotti, Deputado Federal. Professor
Titular de Ginecologia da USP é a seguinte:
”A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. As evidências têm demonstrado que a diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí sua maior freqüência nos níveis socioeconômicos menos favorecidos. O Brasil é um país com incidência alta, cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, a maioria deles do sexo feminino.
”A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. As evidências têm demonstrado que a diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí sua maior freqüência nos níveis socioeconômicos menos favorecidos. O Brasil é um país com incidência alta, cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, a maioria deles do sexo feminino.
O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese.
A
maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando
a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é
questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência,
patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido
amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado.”.
O conceito trazido suso esclarece que o feto
anencéfalo não possui cérebro viável e o tronco cerebral é deformado, de forma
que, vindo a “nascer”, não terá chance de sobreviver, senão por algum tempo não
considerável. A ausência do cérebro impede a ocorrência da vida de relação, ou
seja, não há sentimentos, sensações, os sentidos ficam completamente
comprometidos e os movimentos existirão apenas em razão dos reflexos medulares;
e a deformidade do tronco impede até a viabilidade da vida vegetativa.
Na acepção médica, há uma morte, já que a morte
encefálica é considerada morte de forma a autorizar a doação de órgãos. No caso
da anencéfalia, não há apenas a morte do encéfalo, mas, a ausência do encéfalo.
Importante registrar que o feto anencéfalo, apesar
da ausência do encéfalo e até, neste caso, da ausência das estruturas ósseas do
crânio, apresenta, intra-últero, vitalidade dos demais órgão, que recebem
nutrientes e oxigênio através do cordão umbilical, não sendo razoável falar em
possibilidade de vida, sequer vegetativa, fora do útero.
A gestação do anencéfalo é, totalmente inócua, do
ponto de vista da sobrevida do feto.
Vide trecho do atestado médico de fls.24.
“Do ponto de vista clínico e obstétrico há
evidências científicas claras de que a manutenção da gestação aumenta risco de
morbi-mortalidade materna, e que a letalidade peri-natal é de 100%.”
No caso em apreciação, não há dúvidas de que, vindo
a gestação á termo, não há a mínima condição de sobrevida do feto. Por outra
banda, a possibilidade de erro de diagnóstico da anencefalia, neste caso, é,
praticamente, nula, face a reiteração dos exames e unidade de diagnósticos.
Portanto, não há questionamento médico quanto ao
conceito e expectativa nula de vida do anencéfalo.
Superados os argumentos clínicos, ainda subsistem
as argumentações sociais e afeitas aos direitos humanos envolvidos.
Antes de tecer qualquer comentário filosófico
acerca do abortamento em caso de anencefalia, convém colacionar que todas as
argumentações desse âmbito encontram supedâneo no conceito de vida.
Para a ciência, como outrora discutido, entende-se
em morte quando ocorre a morte do encéfalo; no caso do anencéfalo, há a
ausência de encéfalo.
Argumenta-se que o abortamento de um anencéfalo
configuraria um desrespeito a vida humana, além de privar o feto de receber o
carinho das pessoas que o amam enquanto sobreviver.
Embora haja um aceitável romantismo, entendo não
ser prudente, neste momento, arroubos de sentimentalismo extremo, já que o
anencéfalo não possui as estrututuras cerebrais capazes de o fazer se
relacionar de qualquer forma, não há sentimentos e não há sentidos.
Tal romantismo, sentimentalismo, nada mais é que um
reflexo da constante relutância humana em reconhecer suas limitações. Seria
humilde até, entender que nossa condição físico-humana é frágil e que nosso
invólucro é falível, podendo nos tornar, em um curto e inexplicável momento
genético, quase “um nada”.
Quando falo em “um nada”, refiro-me a impossibilidade
inerente a todo ser humano de ser reconhecido como vivo, estando ausentes
partes insubstituíveis de nosso corpo.
Do ponto de vista prático, não há vida no
anencéfalo, e, se não há vida, não há que se falar em preservação desse
direito.
Embora o foco da questão esteja no feto, não é
humano olvidar da condição da mulher em uma gestação como essa. Não é justo
retirar-lhe o direito de se resguardar de um trauma, impondo-lhe o dever de
levar a termo uma gestação que terá como fim, inevitável, a morte do neonato.
Acredito que, até mesmo os mais românticos, hão de
concordar que, se o abortamento pode privar o feto de receber o carinho dos
pais, também pode priva-lo de receber as angústias e rejeições que podem advir
de uma gestação frustrante.
Não seria razoável impor o abortamento a todas as
gestantes de fetos anencéfalos, algumas delas preferem ver a face, nem que seja
por poucos instantes, de um filho gerado em seu ventre; no entanto, seria
igualmente, inaceitável condenar uma gestante, inconformada, a aguardar a morte
por nove meses, mormente, quando essa morte poder ser só do filho, mas pode
ser, também, dela, mãe.
Vide atestado médico de fls.25.
“O defeito aberto do tubo neural impinge á grávida, além de traumas
psíquicos, um incremento do risco de morte por:
a) Cursar com Polidramnia (volume excessivo do líquido aminiótico), em
mais de 60% dos casos. A superdistensão da cavidade uterina é fator de risco
para:
1) Amniorrexe Prematura (reptura das membranas do saco gestacional) que
favorece infecção uterina.
2) Ocorrer Gravidez Serotina (que
ultrapassa o termo normal de gestação, gravidez pós-termo) e Posições fetais
anômalas que são indicativas de cesarianas que por si só aumentam a morbidade e
mortalidade materna.
3) Atonia Uterina pós parto (normal ou Cesariano) Falta de contração do
útero após o parto com graves hemorragias intrauterinas e graves distúrbios de
coagulação materna.
4) Descolamento prematuro da placenta normalmente inserida com graves
hemorragias intrauterinas e graves distúrbios de coagulação materna.
b) Desenvolver Pré-Eclampsia (hipertensão arterial,
disfunção renal, hepática e dos mecanismos de coagulação) e complicar com
Eclampsia, que é a forma mais grave em que ocorre convulsões por
comprometimento cerebral.”
Entendo que não é razoável arriscar a vida da mãe
em prol do feto, cuja expectativa de vida não supera dias. Se há um direito á
vida para ser preservado, esse direito é o da vida materna.
ACEPÇÃO
JURÍDICO-FILOSÓFICA
“Como bem lembra JUAREZ TAVARES, em precioso artigo
publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais,“...a norma incriminadora
não é um ente meramente abstrato e neutro, como pensava Kelsen, como forma
exclusiva de imposição de deveres para a satisfação da própria ação de
sancionar, mas o sucesso da interação dos interesses que se manifestam no
processo de sua elaboração” (São Paulo, Revista dos Tribunais, número especial
de lançamento, p.75). Desconsiderar esse aspecto material da formação da norma
é condenar a formulação jurídica a um jogo de mero exercício lógico, sem qualquer
validade para as necessidades sociais de seus reais destinatários. Mais grave
ainda torna-se o apego excessivo á letra fria da lei, sem qualquer
investigação ontológico-material, quando
se observa a falta de uma legitimidade
plena e concreta nos procedimentos
para a sua criação.
Diante disso, ao jurista importa primacialmente
encontrar critérios de garantia individual diante da intervenção punitiva
estatal. Os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar
como balizas para a correta interpretação e o justo emprego das normas penais, não se podendo cogitar de uma
aplicação meramente robotizada dos tipos incriminadores, ditada pela
verificação rudimentar da adequação típica formal, descurando-se de qualquer
apreciação ontológica do injusto. Dentre esses princípios contendores da
pretensão punitiva, destaca-se o da dignidade humana. Nenhuma previsão legal de
infração penal pode sobreviver ao controle vertical de constitucionalidade se o
conteúdo da disposição for claramente atentatório ao princípio da dignidade
humana.
Atento às diretrizes filosóficas esposadas, o
legislador, no artigo 128, inciso I e II do código Penal previu duas causas que
excluem a ilicitude no caso do aborto:
ABORTO NECESSÁRIO
I-
se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
ABORTO NO CASO DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO
II-
se a gravidez resulta de estupro e o aborto é
precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante
legal.
III-
A primeira causa prevista visa preservar a
integridade física, a vida da mãe; a segunda hipótese tem cunho de preservação,
eminentemente, da integridade psicológica da mãe, resguardando-a de uma
gestação cuja origem foi indesejada, minorando-lhe um trauma já presente,
decorrente do próprio ato do estupro.
Lançando mão de igual raciocínio, pode-se entender
como causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, o aborto em razão da
constatada anencefalia do feto. A denominação, inclusive, poderia ser, também,
aborto sentimental ou humanitário, visto ter
o intuito similar de preservar a integridade psicológica da mãe, e até
como um ato de humanidade, em resguardar a gestante dos exaustivos meses de
espera pela morte do filho.
A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo
4º, diz que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
O ordenamento jurídico brasileiro não
vislumbrou a hipótese do aborto em razão
da anencefalia do feto, mas regulou fato similar, o caso do aborto sentimental
ou humanitário.
A analogia não é fonte formal mediata do direito
penal, mas método pela qual se aplica a fonte formal imediata, isto é, a lei do
caso semelhante. Ainda em inteligência ao artigo 4º, da Lei de Introdução ao
Código Civil, na lacuna do ordenamento jurídico, aplica-se em primeiro lugar
outra lei (a do caso análogo), por meio da atividade conhecida como analogia;
não existindo lei de caso parecido, recorre-se
então ás fontes formais mediatas, que são os costumes e os princípios
gerais do direito, princípios esses que se fundam em premissas éticas extraídas
do material legislativo.
CONCLUSÃO
É de minha formação, conceituar o juiz como um ente
despido, desnudo de preconceitos e pré-conceitos. Não é permitido ao julgador
analisar, qualificar e quantificar diferenças concernentes á raça, ao credo
religioso, opção sexual; de outra maneira, não lhe é recomendável vincular seu
convencimento aos seus íntimos conceitos de vida, de maneira a permitir, de uma
forma genérica, independente do caso concreto, um prévio e previsível
julgamento.
Nas mãos, corpo e mente do julgador devem
convergir, em busca do seu silogismo, apenas as duas premissas: a lei e o fato,
nunca se devendo permitir influenciar por sopros de sentimentalismo, nem
inspirações de ordem política, sua sensibilidade deve apenas trilhar o caminho,
único, estreito, mas, bem definido, da justiça.
Nessa ordem de idéias, lançando mão, por analogia,
á norma insculpida no artigo 128, inciso II, do Código Penal, CONCEDO O
ALVARÁ PARA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO da Sra. Emmanoelly Alice Barreto
Gouveia, na forma pleiteada, autorizando a intervenção médica. Por oportuno, em
atendimento à promoção Ministerial, determino que o profissional responsável
pelo procedimento, remeta a este juízo relatório circunstanciado acerca da
intervenção, no prazo máximo de 10 (dez) dias após a sua conclusão.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Jaboatão dos Guararapes, 11 de janeiro de 2005.
a) Andréa Rose Borges Cartaxo - Juíza de Direito
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