Comprovada inviabilização
da vida extra-uterina - Pedido instruído com laudo médico irrefutável da
anomalia e suas consequências e com favorável parecer psicológico do casal -
Consentimento expresso do pai - Evidência de risco à saúde, especialmente
mental da gestante - Interpretação extensiva da excludente de punibilidade
prevista no inciso I do Art. 128 do CP - Aplicação dos princípios da analogia
admitidos do Art. 3° do CPP - Autorização concedida - Apelo provido.
Diante da solicitação de autorização para
realização de aborto, instruída com laudo médico e psicológico favoráveis,
deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro , e
evidenciado o risco à saúde desta , mormente a psicológica, resultante do drama
emocional a que estará submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovado
cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de
outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, outra solução não
resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez
Vistos, relatados e discutidos esses
autos de apelação criminal n.° 98.003566-0, da comarca de Videira (2ª
Vara/Fazenda Pública), em que é apelante NC dos S., sendo apelada a Justiça,
por seu Promotor:
Acordam, em Segunda Câmara Criminal ,
por votação unânime, prover o recurso para conceder o alvará judicial para
realização do aborto.
Custas na forma da lei.
Perante o Juízo da comarca de Videira, NC dos S.
ingressou com pedido de alvará judicial para realização do aborto,
argumentando, em síntese, que vive há mais de 12 anos com AL, sendo que no
final do mês de dezembro de 1977 engravidou do primeiro filho do casal, o que a
fez procurar assistência médica para realização de exame pré-natal,
oportunidade em que lhe foi requisitada uma ecografia obstétrica
(ultra-sonografia) , que realizado, em 13/02/1998, constatou-se possível
existência de anomalias no feto, correlacionadas à anencefalia, sugerindo os
médicos, então, a feitura de novos exames para comprovação da situação.
Em 27 de fevereiro, a autora submeteu-se a uma
segunda ultra-sonografia, que confirmou a má formação fetal, notadamente no que
diz respeito ao segmento encefálico, motivo bastante para ser a gestante
encaminhada para clínica especializada nesta Capital, a fim de realizar exame
de ultra-sonografia morfológica fetal, que, levado a efeito em 03 de março,
atestou definitivamente, a existência de anomalias fetais, consistentes em
"anencefalia; extenso disrafismo da coluna tóraco-cervical (aberto),
retroflexão da cabeça fetal em relação ao tronco", incompatíveis com a
sobrevida extra-uterina, como concluiu o médico que subscreveu o laudo
(documento de fls. 19).
Alega que a continuidade da gestação, diante da
situação do feto, poderá provocar-lhe irreparável dano psicológico, além do
desnecessário prolongamento de seu sofrimento; diz que da gravidez poderão
advir resultados dos mais diversos, como a possibilidade de alteração
comportamental no decorrer do período gestacional, pois estará gerando um ser
que comprovadamente falecerá assim que nascer; argumenta, por fim, a
possibilidade dos riscos à sua saúde que qualquer gravidez acarreta.
Amparada no que dispõe o Art. 128, I, do Código
Penal, que não pune o aborto necessário no caso de risco de vida à gestante,
norma que entende aplicável analogicamente ao caso, haja vista o risco de dano
à sua saúde, especialmente a mental, requereu a concessão de alvará judicial
para interromper a gravidez.
Juntou os documentos de fls. 09 a 23.
Após parecer favorável do Ministério Público, e
por requisição deste, foram ouvidos a autora e seu companheiro, que reafirmaram
a intenção de realizar o aborto, bem como declararam ter conhecimento das
possíveis consequências de uma interrupção da gravidez; juntou-se em seguida,
também a requerimento do Parquet a quo, parecer psicológico, que concluiu que
tanto a requerente quanto seu companheiro apresentavam "lucidez e
informação suficiente para uma decisão consciente e irrevogável quanto a
interrupção desta gravidez", motivo pelo qual o órgão ministerial
ratificou o posicionamento anterior.
O togado singular, sustentando que não há previsão
legal para a concessão, já que a hipótese descrita nos autos não está dentre
aquelas não puníveis no Art. 128 do Código Repressivo, e ainda por questões de
ponto de vista emocional, moral, espiritual e ético, houve por bem negar a
autorização requerida.
Inconformada a requerente recorreu, objetivando a
reforma do decidido, para que lhe seja concedido o alvará judicial colimado, a
fim de que possa evitar o prosseguimento da gestação.
Contra-arrazoado o recurso no sentido da concessão
do alvará, os autos ascenderam a esta Instância, onde a ilustrada
Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se pelo seu conhecimento e provimento.
É o
relatório.
1 - Embora nominado como "recurso
ordinário", o apelo interposto está previsto no inciso II do Art. 593, do
CPP, uma vez que objetiva a reforma de decisão definitiva ou com força de
definitiva, proferida por Juiz singular, e foi interposto a tempo, pois na data
do ajuizamento ainda não haviam sido intimadas autora ou seu advogado.
Assim o recurso é próprio e tempestivo, merecendo
ser conhecido.
2 - No mérito, merece ser reformada a decisão de
Primeiro Grau. A apelante, de posse de exames médicos comprovadores de que o
feto que está gerando é portador de anomalias que impedirão sua sobrevida
extra-uterina, aforou pedido de autorização judicial para efetuar o
abortamento, sustentando que esta gravidez lhe trará danos psicológicos
consideráveis, já que, caso leve-a a termo, sabe que estará trazendo no ventre,
por nove meses, um malformado, com chance alguma de sobrevivência.
O desejo de abortar foi ratificado quando ouvida
pela autoridade judicial, ocasião em que declarou:
"(...) Estou grávida já no 4° mês de
gestação. Através de exames soube que a criança apresenta problemas sérios
cerebrais e também na coluna cervical, o que impossibilita a vida
extra-uterina. Diante desta constatação, gostaria de realizar o aborto. Tenho
ciência das conseqüências que o aborto pode acarretar, mas mesmo assim estou
decidida a praticá-lo, pois que seria mais doloroso ver a criança nascer nas
condições em perspectiva. (...) Os médicos me asseguraram que a criança não vai
ter sobrevivência após o nascimento." (fls. 30).
Seu companheiro, pai do feto, ouvido, consentiu e
concordou com a pretensão da apelante (fls. 30/31), relatando o seguinte:
"(...) Sou companheiro de N. e nessa condição
concordo com a pretensão da mesma. Conversamos bastante e chegamos à conclusão
de realizar o aborto, pois pelo contrário ao invés de preparar-mos o enxoval,
teríamos de preparar o caixão e o velório. Das possíveis conseqüências do
aborto, tenho conhecimento que o mesmo possa dificultar futura gravidez.
(...)"
O pedido veio instruído com o parecer psicológico
de fls. 32, que dá conta da intensa angústia que acometeu o casal, quando
souberam que o bebê que esperavam não sobreviveria ao nascimento, informando,
ainda, que a apelante, com 32 anos, "é mãe de um casal de filhos
adolescentes, de um casamento anterior, e sabe perfeitamente o que é a
maternidade. Sabe quanto sofrimento ainda terão até o nascimento deste filho e
que não haverá nenhuma chance em criá-lo, devido a má formação congênita",
concluindo a expert, por fim, que "o casal apresenta lucidez e informação
suficientes para uma decisão consciente e irrevogável quanto à interrupção
desta gravidez".
Do ultra-som obstétrico de fls. 19, datado de 03
de março e assinado pelo Dr. Luiz Flávio de A Gonçalves, CRM 4613, constata-se
que a apelante encontrava-se na 17ª semana de gravidez (17 semanas e 4 dias),
quando submeteu-se ao exame, que concluiu que a criança gerada apresentava
‘anomalias fetais observadas ao presente ultra-som caracterizando-se por; 1)
anencefalia; 2) extenso disrafismo da coluna tóraco-cervical (aberto); 3)
retroflexão da cabeça fetal em relação ao tronco. Os achados são compatíveis
com iniencefalia, anomalia esta incompatível com a sobrevida extra-uterina".
Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de
Aurélio Buarque de Holanda, o verbete "anencefalia" significa:
"1. Anomalia de desenvolvimento, que consiste em ausência de abóbada
craniana estando os hemisférios cerebrais ausentes ou representados por massas
pequenas que repousam na base. Monstruosidade consistente na falta de
cérebro".
A autorização judicial para que o médico realize o
abortamento tem sido deferida pelo Juízo Criminal, ‘como autêntica medida
cautela criminal inominada", no dizer do Dr. Adauto Suannes, Desembargador
aposentado e advogado em São
Paulo ( in "Autorização para o abortamento" Boletim
do IBCCrim n.°46, pág. 2), pois o Código Penal, em seu Art. 128, admite que,
em casos especiais, a gravidez seja interrompida sem que tal ato seja punido.
De se salientar, nesse passo, que autorizar não
significa obrigar a gestante a executar o abortamento, mas sim permitir,
conferir licença, consentir que esta se submeta a uma interrupção da gravidez
do feto inviável, pois o fato de provocar o aborto é considerado crime pela
legislação penal vigente, com a fundamentação básica de que o objeto que a lei
protege é o direito à vida do nascituro. De posse do alvará judicial, a
apelante poderá ou não efetuar o aborto.
Evidente que diante da evolução da sociedade e das
tecnologias, tornou-se imperativa a adaptação do ordenamento jurídico,
especialmente das leis penais, codificadas em 1940, aos novos comportamentos,
por isso, a nova parte geral do Código Penal brasileiro se encontra em fase de
elaboração, inserindo-se, dentre dos muitos temas a ser examinados, o do
aborto, conduta punível nos dias atuais, a teor dos Arts. 124 a 128 do referido
estatuto, incluídos nos crimes contra a vida.
Nossa lei penal despenalizou apenas o aborto
efetuado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, chamado aborto
terapêutico ou necessário ou profilático, e aquele procedido com consentimento
da gestante, ou de seu representante legal, no caso de gravidez resultante de
estupro, conhecido como aborto sentimental ou por indicação ética - incisos I e
II do Art. 128 do Código Penal.
O pedido da apelante, apesar de não se enquadrar
rigorosamente nos dois casos previstos em lei, neles se enquadra por analogia
e, diga-se, não é novidade no mundo jurídico.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminai, no
seu Boletim N° 11, divulgou matéria, de autoria do Juiz de Direito Geral
Francisco Pinho Franco, sob o título "Impossível a sobrevida do feto deve
ser autorizado o aborto".
Já no Boletim seguinte, sobre o mesmo tema, foi
publicada esta colaboração do médico Thomas Rafael Gallop, Professor de
Genética Médica na Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto de Medicina
Fetal e Genética Humana, intitulada "Ainda o aborto (legítimo) em razão da
anomalia fetal", em que se esclareceu o seguinte:
"Sempre que se debate a questão do aborto no
Brasil - como agora, na projetada reformulação do Código Penal -, a discussão
tende a se polarizar entre os movimentos de mulheres, de um lado, reivindicando
um direito reconhecido na maioria dos países, e correntes religiosas, sobretudo
a Igreja Católica, de outro, jogando o peso de sua influência para impedi-lo. A
partir de minha experiência no atendimento de mais de 3 mil casais, em exames
pré-natais para diagnóstico de malformações fetais, gostaria de introduzir um
ângulo novo na discussão: o de que o aborto no Brasil é uma questão de saúde
pública e basta examiná-la do prisma da medicina fetal para verificar a
legislação atual, ignorando a evolução do conhecimento científico e dos
costumes sociais, pune injustamente as camadas mais pobres da população.
"Na área de minha especialidade, a
ultra-sonografia e outros exames de alta precisão fornecem hoje dados muito
seguros sobre a saúde do feto nos casos de risco, nos quais, dado um quadro
adverso, o casal deveria ter o direito de escolher livremente pela continuação
ou interrupção da gravidez. São casos de mulheres com primeira gravidez além
dos 40 anos, de grávidas com histórico de doenças geneticamente determinadas na
família ou antecedentes de filhos com algum tipo de má formação e de mulheres
que tiveram infecções na gestação, principalmente rubéola e toxoplamose. São
essas gestações de risco genético.
"Na maior parte dos casos, felizmente, os
exames indicam que a saúde do feto é perfeitamente normal. Mas,
excepcionalmente, pode-se detectar alguma anomalia e nossa posição nesses casos
é que, como ocorre nos países desenvolvidos, seja permitida ao casal a opção de
uma interrupção da gestação até 24 semanas. Isto, com atendimento médico e hospitalar
adequado e sem que o médico, a paciente e sua família se vejam sob a ameaça de
um Código Penal redigido e sancionado em 1940, com os valores da década dos 30,
quando não havia nenhum meio de fazermos um diagnóstico preciso da saúde fetal.
"As mudanças nos costumes e na tecnologia,
nestes 53 anos, formam a nossa convicção de que é necessária e urgente uma
adequação desse código anacrônico ao progresso científico. Dificilmente se
chegará a unanimidade dos pontos de vista com relação a essa questão, mas é
importante destacar a mudança verificada nas últimas duas décadas.
"Recentemente levantamento comparativo feito
pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia mostra que, em 1970,
cerca de 35% dos médicos eram favoráveis a uma lei que permitisse a interrupção
da gravidez por anomalia fetal. Hoje 90% dos obstetras pensam dessa forma.
Houve uma evolução do pensamento médico, ditada por todo tipo de informação e
pelos avanços tecnológicos, mas não acompanhado pela lei penal nem por setores
influentes da sociedade.
No Brasil, ao contrário de países de primeiro
mundo, onde o Estado assume o ônus do deficiente, a responsabilidade recai
fundamentalmente sobre a família, porque o Estado brasileiro se omite
duplamente: praticamente não existe informação dos riscos à disposição da
população e é reduzidíssima a disponibilidade dos exames necessários ao
diagnóstico precoce. O problema social se agrava porque justamente as famílias
mais pobres com menos condição de arcar com o ônus do deficiente são também as
que têm menos acesso tanto à informação quanto aos exames especializados, sem
contar que a maior parte dos seguros médicos não assegura à família cobertura a
criança que nasça com problema herdado ou congênito.
Do lado profissional, o médico enfrenta o problema
de indicar um exame capaz de revelar um diagnóstico desfavorável diante do qual
está de mãos atadas. A lei não lhe permite agir, caso a família opte pela
interrupção da gravidez e a criança nascida com problema não receberá nenhum
tipo de apoio para reabilitação ou adaptação à sociedade.
"De todos os lados a equação é perversa!
"O que nós temos observado é que em 95% dos
casos, diante de uma anomalia fetal grave, a opção do casal é pela interrupção
da gestação, ainda que ela não seja legal em nosso meio. O que chama a atenção
é que isso independe do nível de instrução e formação religiosa do casal, e o
argumento que ouço com freqüência, nesses casos, é o de que o bem-estar da
família está acima do seu credo religioso e das pressões do Código Penal. Trata-se
de uma questão de foro íntimo.
"Finalmente, gostaria de mencionar dois
precedentes jurídicos da mais alta importância. Em dezembro de 1992, o Juiz Dr.
Miguel Kfoury Neto, de Londrina, autorizou a interrupção de uma gestação na
qual havia sido diagnosticado anencefalia. Em dezembro de 1993, entramos com
ação em São Paulo
e obtivemos do Juiz de Direito, Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco
autorização para interromper gravidez de 23 semanas em feto portador de
acrania. A nosso ver, são essas, demonstrações claras onde o avanço da ciência
médica procurou e obteve apoio e sensibilidade da classe jurídica".
Na mesma direção é o entendimento do mestre Paulo
José da Costa, em matéria intitulada "Aborto Eugênico ou Necessário",
publicada na Revista Jurídica n.229, de novembro de 1996, pág.27 a 29 (citada
aliás na petição inicial), de onde se infere que em razão da reforma do Código
Penal, discute-se no Poder Legislativo, a ampliação do rol de excludentes de
antijuridicidade no aborto, senão leia-se:
"Corrente oposta procura ampliar o rol de
excludentes de antijuridicidade no aborto.
"Segundo tal posicionamento, além das duas
excludentes já existentes, seria inserida a hipótese de aborto eugênico ou
eugenésico. Trata-se do aborto piedoso, praticado quando o feto é portador de
anomalia grave e irrecuperável."
Continuando, ressalta que:
"A Medicina, em sua contínua evolução, já
permite identificar e diagnosticar, com precisão, anomalias do feto, durante a
gestação. O diagnóstico de citadas anomalias é feito por meio da análise de
células do feto, das células obtidas no líquido amniótico ou das células da
placenta. As anomalias anatômicas do feto são diagnosticadas por
ultra-sonografia.
Despontou em tal atividade o Instituto de Medicina
Fetal e Genética Humana São Paulo, dirigido pelo eminente Professor Thomas
Rafael Gollop, da Universidade de São Paulo.
Recentemente, tivemos notícia, pelo referido
Instituto, na pessoa do Prof. Gallop, que muitos alvarás tem sido concedidos
pelo Poder Judiciário para realização de aborto, em casos de malformações
graves de fetos, incompatíveis com a vida. Em outras palavras: mediante prova
científica irrefutável, que conduz ao grau de certeza, o feto não dispõe de
qualquer condição de sobrevida. (...)
"Segundo dados fornecidos pelo Instituto,
foram requeridas duzentas e cinqüenta autorizações para realização do aborto
eugênico, sendo que apenas seis pedidos foram indeferidos em todo o Brasil:
dois no Rio de Janeiro, dois em Guarulhos e dois em Belo Horizonte.
"Na comarca de Campinas, entre julho de 1994
e novembro de 1995, todos os pedidos judiciais de autorização para realização
de aborto, em caso de anomalia grave do feto, que conduzem à incompatibilidade
com a vida, foram deferidos.
"A pesquisa revela que grande parte dos
diagnósticos, nos casos em que o aborto foi autorizado, era de anencefalia,
anomalia que inviabiliza por completo a vida extra-uterina do feto.
"Observe-se que o aborto, nessas situações, é
aparentemente eugênico. Na realidade, o aborto é necessário.
"Fundamentam as aludidas decisões os
seguintes argumentos, basicamente:
"1 - Não é qualquer anomalia do feto que dá
ensejo à autorização judicial para o abortamento. Somente as anomalias do feto
que inviabilizem sua vida extra-uterina poderão motivar tal autorização.
"2 - O diagnóstico de anomalia deverá ser
inquestionável.
"3 - Ao lado da inviabilidade da vida
extra-uterina do feto, deve ser considerado o dano psicológico para a gestante,
decorrente de uma gravidez, cujo feto não apresenta sobrevida."
Concluindo, assevera:
"(...) Por que levar adiante uma gravidez
cujo feto seguramente não sobreviverá? Por que impor um sofrimento psicológico
tão intenso e inútil à gestante?
"Direito é
bom senso. Direito
é balanceamento de bens, cotejando-se, em cada situação os seus valores. Diante
de um diagnóstico de anomalia do feto, que o incompatibiliza com a vida de modo
definitivo, a melhor solução é o aborto." (Pág. 29).
Importante gizar que não se trata, aqui, de
autorizar o abortamento de um feto com formação anormal ou defeituosa que o
possibilitasse sobreviver após o nascimento, mesmo que monstruosamente, pois
nossa legislação não tem admitido o aborto eugenésico ou eugênico ou
patológico, isto é "aquele praticado face à possibilidade de vir o
nascituro a portar deficiência física ou mental, por herança genética",
pois "a aceitação de tal procedimento, dizem alguns, faria com que se
retornasse aos tempos remotos da antiga Roma, onde jogavam-se dos penhascos as
crianças nascidas com deformidades, sob o pretexto de que os nascidos sem
‘aparência humana’ não eram pessoas, não eram seres humanos" (Fabrício
Zamprogna Matielo, ‘Aborto e Direito Penal’, Sagra-DC Luzzatto Editores, Porto
Alegre, 1994, pág. 62/63), mas sim consentir que a gestante de um ser sem
condição alguma de sobrevida após o parto possa interromper esta gravidez, como
no caso, onde constatou-se que o feto é portador de anencefalia (ausência de
cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina.
Não se diga da necessidade de realização de
perícia oficial na hipótese, primeiramente em razão do caráter de urgência do
pedido, pois os riscos para a realização do aborto pretendido aumentam a cada
semana de gestação, segundo, porquanto qualquer leigo sabe que da
impossibilidade de sobrevivência de um indivíduo sem cérebro, o que, repita-se,
foi atestado pelo médico subscritor do laudo de fls. 19.
O conceituado Aníbal Bruno, tratando das
"causas de exclusão da antijuridicidade no aborto", já nos idos de
1975, lembrou que:
"O direito reconhece, com função justificativa,
situações que configuram um particular estado de necessidade, em que para
salvar determinado bem jurídico se faz preciso sacrificar a vida do feto.
"Tem-se admitido certo número de indicações
ou critérios em que se justifica a interrupção da gravidez - indicação médica,
indicação ética ou emocional, indicação eugênica, indicação social ou
econômica, indicação racista. E hoje a tendência que mais se manifesta, (...),
é para aumentar o número de causas de exclusão da ilicitude do aborto." (Crimes
contra a pessoa, 3 ª Ed. Ed. Rio, Rio de Janeiro, 1975, pág. 169/170).
Ora, se a lei penal permite o aborto de fetos
normais, sem anomalia alguma, e por isso com condições de sobrevida e
provavelmente de desenvolvimento físico e mental normais, no caso de gravidez
resultante de estupro, "criou o legislador causa de justificação
assemelhada ao estado de necessidade, para permitir o sacrifício do direito à
vida do embrião ou feto em face do peso maior dado a outro bem jurídico - o
direito da mulher à liberdade sexual. Tal permissão só se pode explicar por
aquela consideração das repercussões negativas do nascimento indesejado, nada
impedindo, assim, que corretamente com posição já manifestada pelo legislador,
a licitude da realização do aborto se estenda a outros casos em que, por razões
diversas, o nascimento se mostre igualmente indesejado" (Maria Lúcia
Karam, ‘Sistema Penal e Direitos da Mulher’ Ed. RT São Paulo, 1995, vol. 09,
pág. 160).
Pois bem, como apropriadamente resumiu o ilustre
representante do Ministério Público nesta Instância, Dr. Pedro Sérgio Steil:
"Temos como fato concreto e incontroverso a
anomalia do feto, que inviabiliza inarredavelmente a vida extra-uterina e que,
por isso, provavelmente causará dano psicológico à gestante. Há, portanto, sob
certo aspecto, evidência de risco à saúde da gestante, mormente à saúde mental,
como resultante do drama emocional a que estará submetida se levar a gestação a
termo.
"Por outro lado, a ponderável argumentação
exposta na sentença recorrida, no sentido de que não se pode causar a morte do
nascituro, protegido pelo artigo 4 ° do Código Civil, não nos parece adequada
ao caso, uma vez que estamos tratando de aborto legal - excludente de
antijuridicidade, segundo a qual não se pune a interrupção da gravidez, praticada
por médico, mediante determinadas condições (Art. 128 do Código Penal) - que
acarreta logicamente a morte do feto.
"(...)
"Além disso, embora não seja razão, por si
só, para o acatamento do pleito recursal - mas é lembrada pelo bom senso -
devemos ter em consideração o fato de que Brasil afora se fazem milhares de
abortos clandestinos, flagrantemente ilegais, com riscos à saúde e vida de
gestantes. Não nos parece razoável, diante deste quadro, que a solicitação de
autorização para realização do aborto, instruída com farta evidência de
recomendação médica e psicológica, deliberada com plena conscientização da
gestante e de seu companheiro, seja negada pelo Poder Judiciário.
"Por fim, embora não anotados tecnicamente, é
conveniente considerar a existência de precedentes jurisprudenciais e a
argumentação mencionada no artigo do ilustre professor Paulo José da Costa, no
trecho transcrito pela autora na petição inicial."
Diante das circunstâncias especialíssimas que se
fazem presentes, evidente que se deva fazer uma INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA
EXCLUDENTE DE PUNIBILIDADE PREVISTA NO INCISO IO DO ART. 128 DO CP,
aplicando-se, para tanto, OS PRINCÍPIOS DA ANALOGIA ADMITIDOS NO ART. 3° DO
CPP.
No dizer de Júlio Fabrini Mirabete:
A analogia é uma forma de auto-integração da lei.
Na lacuna involuntária desta, aplica-se ao fato não regulado expressamente um
dispositivo que disciplina hipótese semelhante. No entender de Bettiol consiste
na extensão de uma norma jurídica de um caso previsto a um caso não previsto com
fundamento na semelhança entre os dois casos, porque o princípio informador da
norma que deve ser estendida abraça em si também o caso não expressamente nem
implicitamente previsto." (Processo Penal, Ed. Atlas, 4ª Ed., 1995, pág.
56).
3 - Por todo o exposto, conhece-se do recurso,
dando-se-lhe provimento para, autorizar o abortamento requerido,
determinando-se a expedição do alvará judicial para tanto.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o
Exmo. Sr. Des. Alberto Costa, lavrando parecer o Exmo. Sr. Dr.,. Pedro Sérgio
Steil.
Florianópolis,
05 de maio de 1998.
JOSÉ ROBERGE - PRESIDENTE COM VOTO
Jorge
Mussi – Relator
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