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domingo, 8 de março de 2015


Mutilação feminina

Em Burkina Faso, um dos três países mais empobrecidos do planeta, organizações sociais e autoridades desafiam preconceitos e alcançam êxitos contra prática centenária da excisão do clitóris

Tradição e Multiculturalismo
Norte do país, província Oudalan. Karamoko Traoré é chefe de costumes. Cerca de 50 anos, alguns tufos grisalhos na barba curta, a cabeça coberta por um chapéu tradicional, um bubu branco e azul. Toda esta agitação sobre a excisão quase o divertia. “Sempre fizemos isto. É a tradição. Por que precisaria mudar? Se não as operamos, as garotas vão a toda parte. Para que elas cheguem virgens ao casamento, é preciso que se faça a excisão. E é mais higiênico. No vilarejo de meu cunhado, há mulheres não cortadas. Elas são loucas”.

Loucas como? Ele sorri, mas não responde. “Nós sempre tivemos prazer com nossas mulheres. Hoje, os jovens não respeitam nossos costumes. É por isso que existe a AIDS, o divórcio aumentou e a prostituição também. Os primeiros muçulmanos se escondiam para rezar e eles acabaram vencendo. Será a mesma coisa para aqueles que nós obrigamos à excisão escondida. Eu quis que minhas filhas fossem cortadas, fiz meu dever e elas devem fazer o delas“.

Estes argumentos podem se multiplicar, assim como se ouve dizer que o clitóris contém vermes (confusão feita freqüentemente e ligada a secreções vaginais relacionadas à má higiene íntima) que causariam impotência ao homem, e que se a cabeça do bebê os tocasse durante o parto, a criança morreria ao nascer.

Mais séria ainda é a idéia de iniciação – a excisão freqüentemente fazia parte de um rito. Mas o que significa este rito quando se mutilam crianças cada vez mais jovens, às vezes com apenas alguns meses de idade? Evocar a perda do prazer é inútil, como constata o sociólogo Zachari Congo. “A maior parte das mulheres cortadas passaram pela cirurgia ainda virgens e têm dificuldades de imaginar aquilo que perderam.

Para lutar, vale muito mais a pena se utilizar dos argumentos sanitários. Podemos conceber a renúncia à excisão para facilitar a chegada de um filho, não para que as mulheres aumentem seu prazer sexual”. Frequentemente, é o temor de obedecer “aos brancos” que se manifesta.

O jornalista Boubacar Traoré escreveu a respeito disso num editorial intitulado “Não condenem a excisão”: “Em muitos aspectos, a luta contra a excisão testemunha também um fulgurante choque de culturas. Como explicar a uma velha ’cortadeira’ de Mali, cujas habilidades lhe foram transmitidas por sua mãe, que sua atividade hoje é um crime? Há práticas que podem nos parecer, sob um prisma ocidental, selvagens, para dizer o mínimo. Mas elas se inscrevem em outros lugares como um rito banal. Guardadas as proporções, vocês encontrarão mais que um africano escandalizado de ver que muitos ocidentais não hesitam em abandonar seus pais e lhes internar em asilos quando eles se tornam velhos”.

A educação provavelmente se viu superada por sua velha companheira, a repressão.
Clandestinidade
A clandestinidade, inevitável perigo ligado a toda proibição, se desenvolve. As excisões são feitas às escondidas, cada vez mais cedo, às vezes em bebês de alguns dias, porque é mais fácil. Geralmente, as pessoas das cidades vão para o campo, onde vemos em suntuosos carros pararem nas portas das cortadoras. Alguns pais vão a Mali ou Gana, onde não há lei que proíba a prática. 

Ainda não houve condenações por excisões feitas fora do país. A higiene é ainda mais improvável, o preço aumenta. Em qual proporção? Difícil saber. Os bolsões de resistência ainda são numerosos. Dezesseis províncias ainda são identificadas como de forte prevalência da prática. Para as cortadoras, que transmitem sua profissão de mãe para filha, o negócio se torna cada vez mais rentável, por conta da clandestinidade.

 “Observei minha avó durante 10 anos. Operei dos 22 aos 46 anos. As mães me procuravam, mas parei no dia em que uma menininha quase morreu”, conta uma mulher de Markoye, na província de Oudalan.

Fonte: Le monde diplomatique

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