Mutilação feminina
Tradição e Multiculturalismo
Norte
do país, província Oudalan. Karamoko Traoré é chefe de costumes. Cerca de
50 anos, alguns tufos grisalhos na barba curta, a cabeça coberta por um chapéu
tradicional, um bubu branco e azul. Toda esta agitação sobre a excisão quase o
divertia. “Sempre fizemos isto. É a tradição. Por que precisaria mudar? Se não
as operamos, as garotas vão a toda parte. Para que elas cheguem virgens ao
casamento, é preciso que se faça a excisão. E é mais higiênico. No vilarejo de
meu cunhado, há mulheres não cortadas. Elas são loucas”.
Loucas
como? Ele sorri, mas não responde. “Nós sempre tivemos prazer com nossas mulheres.
Hoje, os jovens não respeitam nossos costumes. É por isso que existe a AIDS, o
divórcio aumentou e a prostituição também. Os primeiros muçulmanos se escondiam
para rezar e eles acabaram vencendo. Será a mesma coisa para aqueles que nós
obrigamos à excisão escondida. Eu quis que minhas filhas fossem cortadas, fiz
meu dever e elas devem fazer o delas“.
Estes
argumentos podem se multiplicar, assim como se ouve dizer que o clitóris contém
vermes (confusão feita freqüentemente e ligada a secreções vaginais relacionadas
à má higiene íntima) que causariam impotência ao homem, e que se a cabeça do
bebê os tocasse durante o parto, a criança morreria ao nascer.
Mais
séria ainda é a idéia de iniciação – a excisão freqüentemente fazia parte de um
rito. Mas o que significa este rito quando se mutilam crianças cada vez mais
jovens, às vezes com apenas alguns meses de idade? Evocar a perda do prazer é
inútil, como constata o sociólogo Zachari Congo. “A maior parte das mulheres
cortadas passaram pela cirurgia ainda virgens e têm dificuldades de imaginar
aquilo que perderam.
Para
lutar, vale muito mais a pena se utilizar dos argumentos sanitários. Podemos
conceber a renúncia à excisão para facilitar a chegada de um filho, não para
que as mulheres aumentem seu prazer sexual”. Frequentemente, é o temor de
obedecer “aos brancos” que se manifesta.
O
jornalista Boubacar Traoré escreveu a respeito disso num editorial intitulado
“Não condenem a excisão”: “Em muitos aspectos, a luta contra a excisão
testemunha também um fulgurante choque de culturas. Como explicar a uma velha
’cortadeira’ de Mali, cujas habilidades lhe foram transmitidas por sua mãe, que
sua atividade hoje é um crime? Há práticas que podem nos parecer, sob um prisma
ocidental, selvagens, para dizer o mínimo. Mas elas se inscrevem em outros
lugares como um rito banal. Guardadas as proporções, vocês encontrarão mais que
um africano escandalizado de ver que muitos ocidentais não hesitam em abandonar
seus pais e lhes internar em asilos quando eles se tornam velhos”.
A
educação provavelmente se viu superada por sua velha companheira, a repressão.
Clandestinidade
A
clandestinidade, inevitável perigo ligado a toda proibição, se desenvolve. As
excisões são feitas às escondidas, cada vez mais cedo, às vezes em bebês de
alguns dias, porque é mais fácil. Geralmente, as pessoas das cidades vão para o
campo, onde vemos em suntuosos carros pararem nas portas das cortadoras. Alguns
pais vão a Mali ou Gana, onde não há lei que proíba a prática.
Ainda não houve
condenações por excisões feitas fora do país. A higiene é ainda mais
improvável, o preço aumenta. Em qual proporção? Difícil saber. Os bolsões de
resistência ainda são numerosos. Dezesseis províncias ainda são identificadas
como de forte prevalência da prática. Para as cortadoras, que transmitem sua
profissão de mãe para filha, o negócio se torna cada vez mais rentável, por
conta da clandestinidade.
“Observei minha avó durante 10 anos. Operei dos 22
aos 46 anos. As mães me procuravam, mas parei no dia em que uma menininha quase
morreu”, conta uma mulher de Markoye, na província de Oudalan.
Fonte: Le monde diplomatique
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