No Diapasão da Injúria
Qualificada
Por Filipe Ferreira
CASO:
Proprietário de lava jato, em dia de movimento intenso de clientes, estaciona,
por falta de espaço no interior do estabelecimento, um dos carros a ser lavado
na calçada, de modo que, os pedestres precisavam descer à rua para poder
continuar o percurso. Ocorre que nesse dia o trânsito em frente ao
estabelecimento fluía violentamente – os motoristas dirigiam em alta
velocidade. O problema se deu quando uma mulher, afrodescendente, com 122 kg
precisou passar pelo local, já que encontrou a calçada bloqueada e ao procurar por
seus direitos junto ao proprietário do estabelecimento comercial, lhe foi dito
por este que ela, transeunte, deveria descer e passar pela rua, chamando-a, por
fim, de “preta gorda”. Pergunta-se: Cabe a aplicação do disposto no artigo 140,
§3°, CP?
INTRODUÇÃO
A
priori, cumpre-se necessária a análise cuidadosa do dispositivo legal referido
na questão, segundo o qual, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o
decoro: §3° se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça,
cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de
deficiência. Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”.
É possível observar, pela leitura do caso, conciliada com
o tipo penal do artigo 140, que o agente aviltou a chamada honra subjetiva da
mulher quando a chamou de gorda, dessa forma, fica mais que clara a
caracterização do crime injúria – atingiu-se a autoestima da vítima.
Todavia, para que se verifique a possibilidade de qualificação
do delito pela utilização de elementos referentes a raça e cor (140, §3°), é
preciso que tais características sejam analisadas. Socialmente, vê-se que os
insultos relativos à cor da pele estão diretamente ligados ao que se chama de
“raça”. Porém, o que vem a ser “raça”?
Historicamente, raça é um conceito compreendido como
sendo um “conjunto de indivíduos de caracteres somáticos semelhantes, que se
transmitem por hereditariedade; origem; variedade da espécie animal que se
conserva e perpetua pela geração; classe, estirpe”.[1]
Ora, a discussão acerca da ideia de raça humana teve
início desde o nazismo, porém, hodiernamente a tese da sua inexistência ganhou
mais força, principalmente, após o advento da genética, haja vista que pesquisas
mostram que a constituição genética dos indivíduos é semelhante o suficiente
para que a pequena porcentagem de genes que se distinguem não justifique a
classificação da sociedade em raças. “A espécie humana é una”.[2]
Logo, insultar outrem tendo por base sua “raça”, ou seja,
o entendimento popular de “subespécie” nada mais é que um erro absurdo perpetrado
entre as gerações; de forma que, a análise dos estudos e correntes modernos,
faz com que reflitamos sobre a (in)coerência do caractere previsto no tipo
penal do 140, §3°, raça, e, quem
sabe, de sua tipicidade.
A questão da ofensa quanto a cor é outro ponto que possui
raiz bem desenvolvida no campo do social. É com base na escravidão, período em
que africanos, sobretudo, foram trazidos para servir aos senhores de terra
brasileiros, que as pessoas costumam tentar inferiorizar as outras,
comparando-as com os escravos, simplesmente pela cor de suas peles, tentando
fazer com que se sintam numa condição de subserviência, o que não passa de
equívoco, porque foram esses indivíduos, outrora considerados como subalternos,
que possibilitaram a construção da sociedade na qual vivemos.
DISCUSSÃO
- Injúria Qualificada X Racismo
Até meados de abril de 1997 havia grandes debates sobre a
questão da prática do crime de racismo descaracterizado pela
imposição/reconhecimento da prática do injusto penal que compreende a injúria;
os réus acusados pelo crime previsto na L7.716/1989, lei de crime de
preconceito de raça ou cor, utilizavam-se dos caracteres do tipo penal da
injúria para que suas condutas deixassem de ser vista como racistas, ou seja,
deixassem de ser, nos termos do artigo 5°, d,
XLII, CF, imprescritíveis e inafiançáveis, passando a ser delitos de menor
potencial ofensivo[3].
Foi em razão do exposto que o legislador penal optou por incluir um dispositivo
no artigo 140 que versa sobre a “injúria por preconceito”.[4]
Atualmente, o critério a ser adotado para a diferenciação
das condutas é o alcance das expressões e o modo da exteriorização; “quando a
ofensa se limita estritamente a uma pessoa como referência a um negro que se
envolve num acidente banal de trânsito, como “preto safado”, estaremos diante da injúria qualificada, por
somente estarmos a verificar ofensa à honra subjetiva da vítima”.[5]
Racismo seria a manifestação de um sentimento em relação
a uma coletividade que detenha as mesmas características físico-biológicas,
como pode ser visualizado no exemplo de Santos (2006), segundo o qual houve um
acidente de trânsito envolvendo dois motoristas, um ‘branco’ e um ‘negro’, no
qual o ‘branco’ dissera algo assemelhado a “tinha
que ser preto para fazer uma caca dessas”.[6]
Fica claro que,
no exemplo supracitado, não foi apenas a honra da pessoa que estava envolvida
no acidente que foi aviltada, mas sim a de toda uma coletividade que apresente
as mesmas características, ou seja, a dignidade de todos os indivíduos de pele negra;
daí o porquê de se considerar como crime de racismo.
CONCLUSÃO
Pela análise do caso concreto é possível perceber que o
dono do estabelecimento comercial incorreu na prática do tipo previsto no
Código Penal, no artigo 140 – injúria – ao cometer um aviltamento à honra
subjetiva da transeunte, sendo qualificado pelo proferir de expressão que
atingira profundamente sua autoestima, dignidade e moral, na tentativa de se por
numa posição de superioridade, menosprezando a vítima, como previsto no §3° do
mesmo dispositivo.
Vale pontificar que a conduta do agente não pode ser
considerada como racista, haja vista que seu externar de palavras não
proporcionou o entendimento de que ele agira com preconceito para com todas as
pessoas de pele negra, mas sim com intuito de tratar a vítima como
‘subespécie’, como inferior, tal como conceito infelizmente perpassado pela
sociedade.
Tal posicionamento encontra amparo em diversos julgados,
como no do TJ-SP. INJÚRIA QUALIFICADA. UTILIZAÇÃO DE EXPRESSÕES DEGRADANTES DA
RAÇA E COR DA VÍTIMA – ‘NEGRA NOJENTA’ E ‘INVEJOSA’. FATO PRESENCIADO POR
VIZINHOS. PROVA SEGURA E COERENTE. VERSÃO DO ACUSADO ISOLADA NOS AUTOS. PENA
CORRETA. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP, Relator: Alexandre
Almeida, Data de Julgamento: 27/02/2014, 4ª Câmara Criminal Extraordinária)
[1] AMORA, Antônio Soares.
Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa, 19ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p.602.
[2] BERCHT, Verônica. Contribuição da
biologia à luta contra o racismo. Revista Princípios, Ed. 79. São Paulo:
Editora Anita Garibaldi, 2005, p.64.
[3] Nesse sentido, JESUS, Damásio de
– Código Penal Anotado. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva,2014, p.554; BITENCOURT, César
Roberto. Código Penal Comentado. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.1172.
[4] CAPEZ, Fernando e PRADO, Stela.
Código Penal Comentado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.312.
[5] CAPEZ apud SANTOS, Código Penal
Comentado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.312.
[6] SANTOS, Christiano Jorge,
promotor de justiça de São Paulo. Racismo ou injúria qualificada? Revista
Justitia, 2006. Disponível em: http://www.revistajustitia.com.br/artigos/a35c5x.pdf. Acesso: abr 2015.
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