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domingo, 3 de maio de 2015

Espaço do acadêmico - Filipe Ferreira - G411





No Diapasão da Injúria Qualificada


Por Filipe Ferreira

CASO: Proprietário de lava jato, em dia de movimento intenso de clientes, estaciona, por falta de espaço no interior do estabelecimento, um dos carros a ser lavado na calçada, de modo que, os pedestres precisavam descer à rua para poder continuar o percurso. Ocorre que nesse dia o trânsito em frente ao estabelecimento fluía violentamente – os motoristas dirigiam em alta velocidade. O problema se deu quando uma mulher, afrodescendente, com 122 kg precisou passar pelo local, já que encontrou a calçada bloqueada e ao procurar por seus direitos junto ao proprietário do estabelecimento comercial, lhe foi dito por este que ela, transeunte, deveria descer e passar pela rua, chamando-a, por fim, de “preta gorda”. Pergunta-se: Cabe a aplicação do disposto no artigo 140, §3°, CP?

INTRODUÇÃO      
A priori, cumpre-se necessária a análise cuidadosa do dispositivo legal referido na questão, segundo o qual, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: §3° se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”.

            É possível observar, pela leitura do caso, conciliada com o tipo penal do artigo 140, que o agente aviltou a chamada honra subjetiva da mulher quando a chamou de gorda, dessa forma, fica mais que clara a caracterização do crime injúria – atingiu-se a autoestima da vítima.

            Todavia, para que se verifique a possibilidade de qualificação do delito pela utilização de elementos referentes a raça e cor (140, §3°), é preciso que tais características sejam analisadas. Socialmente, vê-se que os insultos relativos à cor da pele estão diretamente ligados ao que se chama de “raça”. Porém, o que vem a ser “raça”?
            Historicamente, raça é um conceito compreendido como sendo um “conjunto de indivíduos de caracteres somáticos semelhantes, que se transmitem por hereditariedade; origem; variedade da espécie animal que se conserva e perpetua pela geração; classe, estirpe”.[1]

            Ora, a discussão acerca da ideia de raça humana teve início desde o nazismo, porém, hodiernamente a tese da sua inexistência ganhou mais força, principalmente, após o advento da genética, haja vista que pesquisas mostram que a constituição genética dos indivíduos é semelhante o suficiente para que a pequena porcentagem de genes que se distinguem não justifique a classificação da sociedade em raças. “A espécie humana é una”.[2]

            Logo, insultar outrem tendo por base sua “raça”, ou seja, o entendimento popular de “subespécie” nada mais é que um erro absurdo perpetrado entre as gerações; de forma que, a análise dos estudos e correntes modernos, faz com que reflitamos sobre a (in)coerência do caractere previsto no tipo penal do 140, §3°, raça, e, quem sabe, de sua tipicidade.

            A questão da ofensa quanto a cor é outro ponto que possui raiz bem desenvolvida no campo do social. É com base na escravidão, período em que africanos, sobretudo, foram trazidos para servir aos senhores de terra brasileiros, que as pessoas costumam tentar inferiorizar as outras, comparando-as com os escravos, simplesmente pela cor de suas peles, tentando fazer com que se sintam numa condição de subserviência, o que não passa de equívoco, porque foram esses indivíduos, outrora considerados como subalternos, que possibilitaram a construção da sociedade na qual vivemos.

DISCUSSÃO -  Injúria Qualificada X Racismo

            Até meados de abril de 1997 havia grandes debates sobre a questão da prática do crime de racismo descaracterizado pela imposição/reconhecimento da prática do injusto penal que compreende a injúria; os réus acusados pelo crime previsto na L7.716/1989, lei de crime de preconceito de raça ou cor, utilizavam-se dos caracteres do tipo penal da injúria para que suas condutas deixassem de ser vista como racistas, ou seja, deixassem de ser, nos termos do artigo 5°, d, XLII, CF, imprescritíveis e inafiançáveis, passando a ser delitos de menor potencial ofensivo[3]. Foi em razão do exposto que o legislador penal optou por incluir um dispositivo no artigo 140 que versa sobre a “injúria por preconceito”.[4]

            Atualmente, o critério a ser adotado para a diferenciação das condutas é o alcance das expressões e o modo da exteriorização; “quando a ofensa se limita estritamente a uma pessoa como referência a um negro que se envolve num acidente banal de trânsito, como “preto safado”, estaremos diante da injúria qualificada, por somente estarmos a verificar ofensa à honra subjetiva da vítima”.[5]

            Racismo seria a manifestação de um sentimento em relação a uma coletividade que detenha as mesmas características físico-biológicas, como pode ser visualizado no exemplo de Santos (2006), segundo o qual houve um acidente de trânsito envolvendo dois motoristas, um ‘branco’ e um ‘negro’, no qual o ‘branco’ dissera algo assemelhado a “tinha que ser preto para fazer uma caca dessas”.[6]

            Fica claro que, no exemplo supracitado, não foi apenas a honra da pessoa que estava envolvida no acidente que foi aviltada, mas sim a de toda uma coletividade que apresente as mesmas características, ou seja, a dignidade de todos os indivíduos de pele negra; daí o porquê de se considerar como crime de racismo.


CONCLUSÃO

            Pela análise do caso concreto é possível perceber que o dono do estabelecimento comercial incorreu na prática do tipo previsto no Código Penal, no artigo 140 – injúria – ao cometer um aviltamento à honra subjetiva da transeunte, sendo qualificado pelo proferir de expressão que atingira profundamente sua autoestima, dignidade e moral, na tentativa de se por numa posição de superioridade, menosprezando a vítima, como previsto no §3° do mesmo dispositivo.

            Vale pontificar que a conduta do agente não pode ser considerada como racista, haja vista que seu externar de palavras não proporcionou o entendimento de que ele agira com preconceito para com todas as pessoas de pele negra, mas sim com intuito de tratar a vítima como ‘subespécie’, como inferior, tal como conceito infelizmente perpassado pela sociedade.

            Tal posicionamento encontra amparo em diversos julgados, como no do TJ-SP. INJÚRIA QUALIFICADA. UTILIZAÇÃO DE EXPRESSÕES DEGRADANTES DA RAÇA E COR DA VÍTIMA – ‘NEGRA NOJENTA’ E ‘INVEJOSA’. FATO PRESENCIADO POR VIZINHOS. PROVA SEGURA E COERENTE. VERSÃO DO ACUSADO ISOLADA NOS AUTOS. PENA CORRETA. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP, Relator: Alexandre Almeida, Data de Julgamento: 27/02/2014, 4ª Câmara Criminal Extraordinária)

           







[1] AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa, 19ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.602.
[2] BERCHT, Verônica. Contribuição da biologia à luta contra o racismo. Revista Princípios, Ed. 79. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2005, p.64.
[3] Nesse sentido, JESUS, Damásio de – Código Penal Anotado. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva,2014, p.554; BITENCOURT, César Roberto. Código Penal Comentado. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.1172.
[4] CAPEZ, Fernando e PRADO, Stela. Código Penal Comentado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.312.
[5] CAPEZ apud SANTOS, Código Penal Comentado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.312.
[6] SANTOS, Christiano Jorge, promotor de justiça de São Paulo. Racismo ou injúria qualificada? Revista Justitia, 2006. Disponível em: http://www.revistajustitia.com.br/artigos/a35c5x.pdf. Acesso: abr 2015.

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